Os quatro estratos de integração das regras societárias brasileiras

AutorGustavo Saad Diniz
Páginas58-71

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1. Técnica legislativa em matéria societária

O cosmopolitismo e a capacidade de adaptação são características indissociáveis do direito comercial, em geral, e do direito societário, em especial. Isso faz com que os tipos societários atendam a uma certa uniformidade quanto à sua função econômica e sejam oferecidos ao mercado para a moldura de investimentos e acomodação dos mais diversos interesses. As diferenças se revelam muito mais nas políticas legislativas: alguns ordenamentos são mais detalhados, ao passo que outros são paradoxalmente avaros em textos legais, mas detalhistas na jurisprudência societária.

Exemplo da primeira estirpe pode ser dado com o prolífico Códice Civile, que contém a matéria societária (geral e especial) entre os arts. 2.188 a 2.221 e 2.247 a 2.548. Inspirado no modelo do Código Civil suíço, estabeleceu-se uma lógica de sociedades de pessoas, sem personalidade jurídica, regidas supletivamente pela società. semplice (arts. 2.251 e ss.). Isso ocorre na società in nome colletivo (art. 2.293) e na società in accoman-dita semplice (art. 2.315). Para as sociedades com personalidade jurídica e de capital (società per azioni, società per accomandita per azioni e società a responsabilità limitata) a regência supletiva pode ser das sociedades por ações.

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Com esse mesmo perfil de longa regulação se apresenta a legislação portuguesa. O Código das Sociedades Comerciais (Decreto-lei n. 262/1986) tem a pretensão de completude das grandes codificações, com 545 artigos posteriormente integrados pelo Regulamento CE n. 2.157/2001, relativo ao estatuto da sociedade européia. Entretanto, o modelo português fez previsão dos tipos societários no art. \-, n. 2, franqueando-lhes a constituição para fins comerciais e não comerciais e com minuciosa regulação de cada tipo.

Com as sociedades de pessoas sem personalidade regidas pelo HGB (offene Handeis geselIschaft, Kommanditgesells-chaft e Stille Gesellschaft, além do modelo base do BGB - Gesellschaft bürgerlichen Rechts - para atividades não comerciais), a legislação alemã optou por leis especiais para as sociedades por ações (Kapitalgesellschaft), para as sociedades de responsabilidade limitada (GmbH) e para as cooperativas (Genos-senschaff)} O direito alemão ainda conhece estruturas societárias sobrepostas, como é o caso da GmbH& Co. KG, que é sociedade em comandita cujo sócio de responsabilidade ilimitada é uma sociedade de responsabilidade limitada (GmbH), de modo a trazer limitação dos riscos aos sócios da GmbH?

A estratégia norte-americana é outra. As regras gerais de interpretação são preponderantemente baseadas no sistemajudge-made law, com aplicação de preceitos costumeiros em matéria societária. Há regras de direito positivo, mas são relegadas à autonomia dos estados federados, com regulações específicas sobre partnership, limited liability companies, corporations e outras derivações específicas. A propósito das corporations, existe modelo oferecido pelo Model Business Corporations Act seguido por vários estados.

Conhecer essas alternativas implica perceber que o Brasil ficou a meio caminho entre um modelo e outro, o que nos traz alguns relevantes problemas.

O Código Comercial de 1850 (CCom) continha alguns dispositivos que regravam as sociedades de pessoas e a sociedade anônima. Posteriormente, a necessidade dos comerciantes tornou possível importar o tipo das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, então regidas por 19 artigos do Decreto n. 3.708/1919. Em razão da concisão dos textos legais, a doutrina e jurisprudência equacionaram diversos problemas e omissões de direito positivo, num dos mais notáveis casos brasileiros de preenchimento de vazios por acurada técnica hermenêutica.3

Outro relevante marco legal em direito societário foi a Lei n. 5.764/1971, que tratou das sociedades cooperativas, estabilizando as regras que nos trouxeram até os dias atuais com aproximadamente 6.600 cooperativas que movem 6% do PIB brasileiro. O modelo é bem sucedido, demandando somente pequenas adaptações para as necessidades econômicas específicas, como um sistema eficiente de capitalização, estruturação de grupos de cooperativas e uma recuperação para crises financeiras.

Posteriormente, a insuficiência do marco legal foi determinante para que Lamy Filho e Bulhões Pedreira conseguissem o acolhimento do projeto legislativo das sociedades anônimas, convertido na excelente Lei n. 6.404/1976 (LSA), que sucedeu o Decreto--lei n. 2.627/1940 (ainda em vigor nos arts.

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59 a 73). Apesar de alguns pontos nodais de falhas já identificadas - a exemplo da inva-lidade de deliberações - regulamentação das sociedades anônimas forneceu bases legais seguras para o avanço de grandes empresas e, com alterações pontuais, permitiu-se a reestruturação do mercado de capitais no país.

Seguindo esses parâmetros, foi possível observar no Brasil: (a) cenário de sociedades de pessoas em franco desuso; (b) crescimento vertiginoso de sociedades cooperativas; (c) assunção das sociedades por quotas de responsabilidade limitada como o modelo vitorioso para acomodação dos interesses de pequenos e médios - e até grandes4 - empreendimentos, mesmo sem legislação completa para lhes definir os exatos contornos, mas tendo na LSA o regramento supletivo imediato para aquilo que não fosse regulado pelo contrato [/. 4\\ (d) alternativa segura para acomodação de interesses em grandes empreendimentos e para o mercado de capitais, com parâmetros claros oferecidos pela LSA. Assim, as dúvidas de interpretação anteriores ao CC eram mais circunscritas à compatibilidade de regras supletivas para cada um dos tipos. Se comparada à realidade atual, as dúvidas retrocederam: hoje se questiona a própria regra aplicável.

Pudera nosso legislador ter evoluído pontualmente nessa estrutura consolidada, incorporando os avanços da jurisprudência e adaptando em alguns pontos que a doutrina assinalava. O caminho parecia ser de micros-sistemas até o advento do CC em 2003, mas o direito codificado rompeu sensivelmente com essa lógica então vigente, implodindo o edifício societário histórico então erigido, mas sem a contrapartida de elevar pilares seguros para a nova base do direito unificado.

A técnica utilizada foi de estabelecer regramentos supletivos superpostos dedutivamente, ou seja, na falta de regras especiais, busquem-se as regras gerais, num confuso jogo de repristinações5 que assim pode ser escalonado: (a) a associação é o gênero das agremiações de pessoas, do qual sociedades são espécies. Na falta de regras especiais, esse é modelo base, conforme se depreende do art. 44, § 2º, do CC;6"7 (b) a sociedade em comum (arts. 986 a 990 do CC) é o parâmetro legal não personificado para contratos de sociedade não registrados e sociedades irregulares, salvo as sociedades anônimas em organização (art. 81 da LSA); (c) pretende-se que a sociedade simples seja a provedora*'9 abastecendo com regras supletivas todos os demais modelos, conforme prevêem os arts. 986 (para sociedade em comum), 996 (para conta de participação), 1.040 (para nome

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coletivo), 1.046 (para comandita simples), 1.053, caput (para limitadas), 982, parágrafo único e 1.096 (para cooperativas), 1.089 (para anônimas); (d) ressalve-se, por anacronismo, que essa via tem mão dupla, porque o art. 983 do CC admite que a sociedade simples pode se constituir de conformidade com um dos tipos de sociedades empresárias, menos a S/A, que é empresária pela forma (art. 982, parágrafo único); (e) naquilo que for compatível, algumas regras de sociedade anônima são (e.l) supletivas para as comanditas por ações (art. 1.090 do CC e art. 280 da LSA), (e.2) podem ser aplicadas por analogia quando forem compatíveis com o modelo e (e.3) as sociedades limitadas podem eleger essas regras como supletivas; (/) as sociedades de advogados têm regência especial pela Lei n. 8.906/1994, nos arts. 15 a 17, que as caracteriza como "sociedades civis" que não podem ter características "mercantis", o que deverá ser interpretado, com atualização da terminologia, como sociedades simples de advogados sem caracteres empresariais.

Gráficamente, todo o exposto geraria algo como:

[VER PDF ADJUNTO]

Acontece que essas regras não são isoladas e nem inibem a aplicação de preceitos constitucionais como a liberdade de associação (art. 5º, XVII e XVIII, da CF) ou o direito de defesa em deliberações assembleares (art. 5º, LV, da CF). Também não afastam a plena integração do sistema positivo pela analogia10 e até mesmo pelos costumes."

Assim, na compreensão geral desse tópico, é possível indicar um cenário de quatro estratos de regras para integração do sistema societário, aplicáveis por superposição dedutiva até o caso concreto, do geral ao particular, a partir de regras de ordem pública, regras específicas do tipo, regras supletivas e regras analógicas:

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Ressalvadas as regras de ordem pública - aplicáveis por princípio - a resolução dos problemas por um dos estratos inibe a busca de regras no estrato inferior, seguindo uma pauta de interpretação que deve obedecer à (a) preservação do tipo societário; (b) não afrontar regras de ordem pública e indisponíveis; (c) não prejudicar terceiros, gerando piora na situação à custa da melhora da eficiência econômica do modelo societário.

A partir dos pressupostos lançados, permitem-se algumas análises do regramento supletivo das sociedades.

2. Os regramentos supletivos entre os tipos de pessoa jurídica

E perceptível que a técnica do Código Civil foi de alinhavar as linhas gerais de regulamentação das pessoas...

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