Os Limites Quantitativos das Sanções Pecuniárias Decorrentes do Descumprimento de Deveres Instrumentais

AutorMaria Ângela Lopes Paulino
CargoMestranda pela PUC/SP - Especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP
Páginas263-282

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1. Relevância do tema

O Direito existe para manter a paz, a justiça e a segurança nas relações firmadas no convívio em sociedade. Serve como controlador da conduta humana, motivando e alterando o comportamento das pessoas.

No interior da linguagem jurídico--prescritiva a sanção cumpre papel fundamental para o sucesso dessa intervenção, na medida em que serve como expediente efetivo para que o destinatário da mensagem paute sua conduta dentro dos limites da licitude.

No âmbito do direito tributário, cujas normas jurídicas prescrevem deveres que visam, em última análise, à constrição do patrimônio dos contribuintes em favor dos cofres públicos, a função sancionatória torna-se indispensável, como bem realça Ives Gandra da Silva Martins: "Sem norma sancionatória ninguém cumpriria suas obrigações fiscais, ou muito poucos o fariam, ao contrário do que se vê nas normas de aceitação social, em que a norma sancionatória é apenas aplicável aos casos patológicos, como ocorre em relação ao direito àvida".1

Contudo, a previsão e a imposição das sanções tributárias encontram limites demarcados pelo próprio ordenamento jurídico.

Dentre outros fatores, a relevância do estudo das sanções administrativas tributárias sobrevém dos abusos na quantificação das multas, principalmente daquelas aplicadas pelo descumprimento dos deveres instrumentais, agravando-se a problemática diante da existência de posicionamentos dissonantes acerca de sua aplicabilidade nos domínios dos órgãos administrativos, no cumprimento de seu papel de controle de legalidade dos atos de aplicação de sanções, bem assim na esfera do Poder Judiciário.

2. Delimitação do objeto

Conhecer o sistema do direito positivo implica reduzir suas complexidades, re-fletindo a estrutura lógica da norma jurídica nada mais que o resultado de uma cisão metodológica, necessária para nos aproximarmos da linguagem-objeto.

A norma jurídica consiste no juízo hipotético-condicional formulado pelo exegeta a partir da valoração dos enunciados prescritivos da ordem posta. Na qualidade de significação de sentido deôntico completo, organiza-se, internamente, por meio de duas proposições, interligadas pelo functor deôntico neutro (D): a proposição hipótese (H), na posição sintática implicante, descreve um evento de possível ocorrência, e a proposição consequente (C), na posição de implicada, estabelece a relação (R) entre dois sujeitos (S' e S’’), modalizada como obrigatória, permitida ou proibida. Em linguagem formalizada, temos: D [H^R(S',S")].

O direito tributário comporta duas categorias de normas primárias, ambas regras de conduta, de natureza material: (i) a norma primária tributária, que, em sua acepção ampla, compreende tanto a norma

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instituidora do tributo quanto a norma prescritora de deveres formais; e (ii) a norma sancionatória, cuja proposição-hipóte-se descreve uma infração qualificada pelo descumprimento da obrigação tributária ou do dever instrumental exigidos pela norma primária.

O objeto do presente trabalho circunscreve-se apenas às normas primárias san-cionatórias que veiculam sanção material, do tipo pecuniário, em função do descumprimento de deveres instrumentais, aplicada pelo próprio sujeito ativo, credor das formalidades que documentam a incidência tributária e titular do direito violado, em face do infrator, sujeito passivo e devedor da prestação instrumental.

Frise-se que o termo "sanção", ora empregado, não se confunde com aquelou-tra sanção processual. Embora ambas configurem relações jurídicas sancionatórias, a sanção processual está prevista no consequente da norma secundária e consubstancia penalidade a ser aplicada pelo Estado--juiz em face do infrator. Acerca da distinção entre a sanção processual e a não processual, ensina o Prof. Lourival Villanova que "a sanção em nível pré-processual, que tem por pressuposto o não cumprimento de deveres ou obrigações principais, carece de eficácia coercitiva. Somente na norma secundária, que se diz norma sancionado-ra, o descumprimento é o pressuposto anti -jurídico que conduz à relação jurídica processual".2

Em resumo, a presente investigação propõe-se a estudar a sanção decorrente da ausência do cumprimento do objeto do vínculo jurídico instrumental, aplicada pela própria Fazenda Pública. Em outros termos, visa a investigar a penalidade pecuniária referente à inobservância dos deveres formais mediante os quais o sujeito passivo tem o dever de preencher declarações, realizar a contabilidade fiscal, emitir notas fiscais, escriturar livros, enfim, do-cumentar, nas formas exigidas em lei, a ocorrência do fato previsto na hipótese da regra-matriz de incidência tributária.

3. A estrutura lógica da norma sancionatória aplicada em função do descumprimento de deveres instrumentais e seus conteúdos de significação

A Ciência do Direito dispõe-se a estudar a linguagem do direito positivo, descrevendo as suas normas jurídicas, transmitindo conhecimento e informações sobre como elas regulam as condutas humanas. Com o escopo de atribuir maior rigor ao discurso jurídico-científico, o ilustre Prof. Paulo de Barros Carvalho desenvolveu a concepção da regra-matriz de incidência tributária, cujo esquema metodológico é extremamente útil no estudo das infrações e sanções tributárias. A propósito, acrescenta o renomado Professor: "As normas jurídicas que põem no ordenamento sanções tributárias integram a subclasse das regras de conduta e ostentam a mesma estrutura lógica da regra-matriz de incidência".3

Adequando a estrutura lógica da regra-matriz de incidência tributária à norma sancionatória decorrente do desatendimen-to de deveres instrumentais, encontramos no suposto (i) o critério material - uma conduta transgressora do dever instrumental; (ii) o critério espacial - o local onde se reputa ocorrida essa conduta ilícita; (iii) o critério temporal - o momento em que se considera praticada a conduta infringente; e no consequente (iv) o critério pessoal - o sujeito ativo é o titular do direito subjetivo de exigir a penalidade cabível e o sujeito passivo o titular do dever jurídico de adim-pli-la; e (v) o critério quantitativo - a base de cálculo da sanção pecuniária e a percentagem sobre ela aplicada ou a quantia fixa

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ou, ainda, as delimitações do dever jurídico4 (de fazer ou de não fazer). A quantificação, nesta última hipótese, vale para medir a intensidade deste dever.

4. A impropriedade lógico-semântica do art 113 do CTN: inclusão das penalidades no conceito de "obrigação tributária"

Antes de adentrarmos o tema propriamente dito - penalidades pecuniárias (multas fiscais) pela inobservância dos deveres instrumentais -, cumpre-nos tecer, brevemente, algumas considerações sobre a incongruência lógico-semântica contida no art. 113 do CTN.5

A despeito dos esforços na produção de uma linguagem satisfatória, as falhas contidas na nomenclatura utilizada pelo legislador são corriqueiras e merecem ser toleradas, tendo em vista a composição heterogênea do Poder Legislativo, cujos membros possuem formações técnicas e acadêmicas das mais diversas, cabendo ao cientista do Direito flagrá-las e corrigi-las, imprimindo solidez e rigor na construção do discurso científico.

O legislador complementar, no § 1° do art. 113 do CTN, fraqueja no rigor da Sintaxe e da Semântica ao enunciar que a obrigação tributária tem por objeto "penalidade pecuniária", repetindo o mesmo erro no § 3o, ao converter as penalidades pecuniárias decorrentes do não cumprimento de deveres instrumentais em obrigação tributária.

À luz do conceito de tributo definido no art. 3o do mesmo diploma legal, o objeto da prestação tributária jamais poderá re-fletir sanção decorrente de ato ilícito; ou, melhor, a obrigação tributária não pode ter como objeto pagamento de penalidades pecuniárias, em afronta expressa à própria instituição do tributo.

O pagamento de tributo e aqueloutro de penalidade pecuniária compreendem relações jurídicas distintas, situadas no consequente de normas jurídicas diversas: a primeira, relação jurídica tributária (oriunda de fato lícito), situada na norma primária de incidência tributária; e a segunda, relação jurídica sancionatória (oriunda de fato ilícito), situada na norma primária sancionatória. Trata-se, enfim, de realidades jurídicas díspares que, no entanto, se assemelham pelo simples fato de ambas finalizarem o cumprimento de uma prestação patrimonial por parte do sujeito passivo em face do sujeito ativo. O tributo é devido pelo sujeito passivo na qualidade de...

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