Quando a lei for omissa...' Sobre a controvertida noção de princípio geral de direito

AutorFábio Perin Shecaira
CargoProfessor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ)
Páginas85-106
Quando a lei for omissa...
Sobre a controvertida noção de
princípio geral de direito
Fábio Perin Shecaira*
Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a ana-
logia, os costumes e os princípios gerais de direito. (Lei de Introdução
1. Introdução
Não há consenso entre juristas brasileiros quanto ao sentido de “princí-
pios gerais de direito”, expressão que aparece no artigo quarto da Lei de In-
trodução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) e descreve – assim como
“analogia” e “costumes” – um dos mecanismos institucionais de integração do
direito. Grifo “mecanismos institucionais de integração do direito” porque
nessa expressão f‌iguram conceitos que exigem elucidação. São conceitos
técnicos, de teoria geral do direito.
(A) Os mecanismos em questão são institucionais porque são of‌icial-
mente reconhecidos como mecanismos de integração do direito. Sistemas
jurídicos reais também podem incluir mecanismos não reconhecidos de
integração do direito. Trata-se de materiais interpretativos ou métodos ar-
gumentativos que são frequentemente usados por juízes quando a lei é
omissa, mas que não são of‌icialmente reconhecidos pelos próprios juí-
zes, legisladores e demais agentes institucionais. Aliás, o artigo quarto da
LINDB não diz nada sobre a jurisprudência. Isso sugere, à primeira vista,
que a jurisprudência não é of‌icialmente reconhecida como mecanismo de
integração do direito no Brasil1. O mesmo costuma ser dito a respeito de
* Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Doutor em f‌ilosof‌ia (McMaster University,
estágio doutoral em Harvard Law School). Mestre em f‌ilosof‌ia (UFRJ). Bacharel em direito (UFRJ). E-mail:
fabioshecaira@hotmail.com.
1 Ou pelo menos não na maioria dos subsistemas do direito brasileiro. A Consolidação das Leis do Trabalho,
Direito, Estado e Sociedade n.40 p. 85 a 90 jan/jun 2012
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outros sistemas jurídicos da tradição romano-germânica que não tratam a
jurisprudência of‌icialmente (nem na lei, nem na prática judicial) como fon-
te direta ou obrigatória do direito. Mas o discurso of‌icial pode enganar: não
é incomum que em países da tradição romano-germânica os juízes usem
precedentes judiciais quase da mesma forma que os juízes anglo-america-
nos2, ainda que eles não digam claramente que estão usando “precedentes
vinculantes”. Reconhecimento of‌icial não é, portanto, necessário para que
um mecanismo de integração f‌igure na prática judicial. Mas ele não deixa de
ser importante: o reconhecimento institucional reveste o mecanismo de in-
tegração de uma força (no mínimo retórica) que, caso contrário, lhe faltaria.
(B) Os mecanismos em questão são mecanismos de integração porque
servem para completar lacunas ou omissões. “Lacuna” é uma palavra ambí-
gua3. Às vezes é usada de forma neutra, para indicar que o texto legal não
regula claramente algum tipo de conduta: por exemplo, bicicletas elétri-
cas são equiparáveis a motocicletas para efeitos legais?4 Às vezes “lacuna”
é usada de forma não neutra, avaliativa. Imagine uma lei que proíbe o
aborto exceto quando o parto gera grave risco à gestante. Essa lei, tomada
literalmente, não permite que uma gestante faça um aborto com base na
justif‌icativa de que a gravidez a lança em depressão profunda e a faz pensar
seriamente em suicídio. Alguém poderia dizer, no entanto, que a lei em
questão é “omissa” (no sentido avaliativo) porque, apesar de textualmente
clara, provavelmente foi criada sem que se levasse em consideração um
cenário que deveria ter sido considerado – a saber, o cenário em que a gra-
videz gera risco de maneira oblíqua, não porque o parto será complicado,
mas porque a gestante adquire tendências suicidas.
Neste artigo, eu uso “lacuna” (e “omissão”) em sentido neutro. No con-
texto da LINDB, o uso avaliativo de “lacuna” é, no mínimo, suspeito. Laura
no artigo oitavo, diz: “As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou
contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e
normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho [...].” (grifo meu)
2 MERRYMAN; PÉREZ-PERDOMO, 2007, p. 41.
3 ALCHOURRÓN; BULYGIN, 1987, capítulo 6.
4 Esse é um exemplo de lacuna de reconhecimento: a lei, ex hypothesi, regula apenas o uso de “motocicletas”,
termo de aplicação duvidosa no caso das bibicletas elétricas. De acordo com Alchourrón e Bulygin, há
outros tipos de lacuna em sentido neutro. Não é necessário explorar a distinção sutil entre lacuna de
reconhecimento e lacuna normativa, por exemplo. O contraste que mais nos interessa aqui é aquele entre
lacuna em sentido neutro e lacuna em sentido avaliativo.
Fábio Perin Shecaira
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