Qual é o sentido da igualdade para um jurista que pensa como um negro?

AutorAdilson José Moreira
Páginas241-259
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CAPÍTULO X
QUAL É O SENTIDO DA IGUALDADE
PARA UM JURISTA QUE PENSA
COMO UM NEGRO?
É muito interessante observar como nossa compreensão da igual-
dade muda ao longo do tempo. Como disse antes, nunca fui tratado de
forma igualitária dentro do ambiente escolar quando era criança. Minhas
professoras sempre motivavam meus colegas brancos a seguirem as mais
diversas carreiras. Elas aplaudiam suas escolhas e diziam que eles certa-
mente conseguiriam alcançar seus objetivos. Minha situação era bem
diferente. Elas sempre me diziam que eu deveria ter pretensões menos
ambiciosas. Negros aprendem a identificar a condescendência de pessoas
brancas desde cedo. Eu dizia que queria ser um físico ou advogado e
elas indagavam se eu realmente achava que poderia alcançar esse obje-
tivo. Elas diziam que eu era até inteligente, mas que deveria ser mais
realista. Os outros alunos brancos não tinham condições econômicas
melhores do que as minhas, mas o fato de serem brancos já determina-
va que eles tinham os propósitos certos. Bem, eu ansiava naquele mo-
mento pelo mesmo tipo de tratamento, a mesma motivação, o mesmo
reconhecimento da minha capacidade. Eu desejava o mesmo procedi-
mento. Elas também deveriam me incentivar da mesma maneira do que
os outros meninos; isso satisfaria minha busca pelo mesmo tipo de apre-
ço. Comecei a buscar outra forma de igualdade quando era adolescente,
momento no qual teve início minha atuação no movimento negro. Era
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ADILSON JOSÉ MOREIRA
uma instituição inspirada pelo marxismo e muitos de seus membros
achavam que disparidades entre negros e brancos seriam resolvidas com
políticas distributivas. Ainda passei por outro movimento negro de ins-
piração culturalista: seus líderes achavam que os problemas da população
negra poderiam ser resolvidos com a afirmação cultural dos negros, que
essa seria a principal forma de afirmação da dignidade do povo negro.
Não abandonei a defesa dessas diferentes formas de igualdade, mas
não penso que elas sejam suficientes para a promoção da emancipação po-
pulação negra. O amadurecimento pessoal e intelectual nos mostra que elas
possuem um ponto em comum: são dimensões necessárias na formulação
de estratégias da luta contra a subordinação objetivos que requerem articu-
lações mais complexas. Sabemos que o racismo estabelece diferenciações de
status cultural e status econômico e essa é a razão pela qual devemos pensar
a interpretação do princípio da igualdade a partir de uma perspectiva inte-
grada. A interpretação da igualdade deve ter um propósito claro: a promo-
ção da igualdade de status entre grupos sociais. As for mas paralelas de
discriminação que pessoas negras sofrem concorrem para a reprodução
de tipos de desigualdades no plano cultural e material. Esses dois âmbitos
estão sempre se reforçando para reproduzir uma realidade social que juristas
brancos pensam estar relacionada apenas com questões de ordem material.
Nossa moralidade pública baseada na ideia de neutralidade racial não per-
mite que eles considerem no processo de interpretação desse preceito os
mecanismos que são construídos para afirmar a diferença de valor entre os
grupos raciais. Eles também não dão conta de que a reprodução de dispa-
ridades raciais entre negros e brancos independe de meios diretos de discri-
minação racial, nem que elas são um projeto de dominação social.217
A consequência mais problemática do mito da neutralidade racial
é a defesa do indivíduo como o parâmetro principal para a implemen-
tação de políticas sociais. Vejam, afirmei repetidamente que um jurista
que pensa como um negro deve rejeitar o individualismo como princí-
pio central de interpretação da igualdade. Essa perspectiva precisa ser
217 Para uma análise da influência da raça na história do constitucionalismo brasileiro,
ver: QUEIRÓZ, Marcos Lustoza. Constitucionalismo brasileiro e o atlântico negro. Rio de
Janeiro: Lumem Juris, 2017.

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