Qual é o lugar da raça na interpretação jurídica?

AutorAdilson José Moreira
Páginas153-194
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CAPÍTULO VI
QUAL É O LUGAR DA RAÇA NA
INTERPRETAÇÃO JURÍDICA?
Sempre procuro ser muito discreto dentro do meu espaço profis-
sional. Quero saber quais são as inclinações ideológicas dos indivíduos
antes de ter debates teóricos com eles ou antes de compartilhar quaisquer
informações pessoais. Porém, você pode ser surpreendido, mesmo quan-
do você toma essas precauções. Convidei um colega para um café alguns
meses atrás. Começamos a discutir estratégias para aumentarmos nossas
rendas. Ele planeja ter mais um filho, eu quero adotar um menino negro.
Ele me aconselhou a expandir meus interesses. Segundo ele, minhas
chances de conseguir mais fontes de renda são prejudicadas porque eu
só falo sobre questões relacionadas a minorias raciais e sexuais. Questio-
nei essa afirmação na mesma hora. Afirmei que falo sobre temas que são
estritamente jurídicos como controle de constitucionalidade e interpre-
tação constitucional, mas utilizo esses temas para falar sobre direitos de
minorias. Bem, essa não foi a primeira vez que ouço pessoas dizendo
que não escrevo sobre temas jurídicos. Eu me lembro de que um dire-
tor de uma das melhores Faculdades privadas de Direito do País me
perguntou uma vez se eu era um constitucionalista ou sociólogo, depois
de ter apresentado a ele uma obra que falava sobre cidadania sexual como
um parâmetro subjetivo de controle de constitu cionalidade. É o tipo de
fala que nos deixa constrangidos pela limitação de perspectivas, mas essa
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ADILSON JOSÉ MOREIRA
é a posição típica de juristas brancos. Embora eu tenha escrito uma tese
sobre interpretação da igualdade, outra sobre Direito Constitucional
Comparado, um livro sobre controle de constitucionalidade e vários
artigos sobre direitos fundamentais, pessoas se recusam a reconhecer a
relevância desses trabalhos porque eu abordo esses temas a partir da luta
pela integração de minorias raciais e sexuais. Sei que eles nunca leram
meus trabalhos integralmente, mas para eles o título já indica que não
estou fazendo um trabalho acadêmico relevante.
Esse exemplo mostra que nós, juristas negros, enfrentamos alguns
problemas significativos. Primeiro como cidadãos, segundo como pro-
fessores e depois como juristas. Professores têm baixos salários e estão
sempre diante da possibilidade de perder seus empregos, o que é uma
perspectiva muito problemática. Além disso, professores negros enfren-
tam um problema moral que está relacionado com sua condição racial:
o constante dilema sobre a escolha entre falar a partir de uma voz dife-
rente ou a partir da mesma perspectiva de juristas brancos. Muitos dos
juristas brancos que recebem títulos de mestre e doutor não escrevem
sobre temas que poderão ter um impacto sobre a vida de grupos mino-
ritários, sobre a realidade social do País. Eles também só fazem referên-
cia a autores consagrados, autores que são quase sempre brancos. Tenho
lutado muito para encontrar minha voz dentro do Direito e não estou
disposto a abandonar esse projeto. Não posso falar ou pensar como um
jurista branco, não posso parar de refletir sobre o potencial transforma-
dor do Direito, o que requer abordar essa disciplina de forma distinta da
adotada por outras pessoas.
6.1 Sobre a dimensão política da identidade
Antes de começarmos a falar sobre o lugar da raça no processo de
interpretação, devemos problematizar um tema importante: a relevância
da identidade nas reflexões sobre a democracia. A representação do
sujeito presente no discurso liberal está baseada em uma divisão essencial
entre o espaço público e o privado, bem como uma dissociação entre o
Direito e a cultura. A representação do ser humano no espaço público
decorre de sua compreensão como um ente racional, como um sujeito
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CAPÍTULO VI - QUAL É O LUGAR DA RAÇA NA INTERPRETAÇÃO...
que possui uma existência unitária. Ela encontra fundamentação da sua
identidade abstrata como um sujeito de direito, como uma pessoa que
existe socialmente a partir de direitos individuais. Por outro lado, ele
possui a liberdade para buscar seus interesses no espaço privado, âmbito
no qual ele pode realizar sua liberdade antropológica. O sujeito moder-
no também está marcado por uma cisão entre o Direito e a cultura
porque dentro da comunidade liberal apenas sua existência como
portador de direitos tem relevância jurídica; outros pontos de sua
identidade não têm relevância. As identidades individuais decorrentes
de seus pertencimentos culturais não possuem relevância para o Di-
reito porque elas pertencem ao espaço privado. A esfera privada é o
lugar da construção da identidade dos indivíduos, o que ocorre em
função das oposições entre diferenças. O sujeito moderno aparece
como uma referência da validade do conhecimento, motivo pelo qual
temos um processo de subjetivação do Direito; os direitos fazem re-
ferência aos indivíduos e não às instâncias externas que dão inteligibi-
lidade à ordem social.141
Embora a modernidade abra espaço para que as pessoas possam
pleitear uma existência autêntica, ela também criou mecanismos res-
ponsáveis pela construção de identidades que são atribuídas a grupos
de pessoas, processo que legitima várias relações arbitrárias de poder.
A raça é uma dessas formas de identidade que tem sido usada para
confinar grupos de pessoas a espaços de subordinação, que teve início
com o projeto de dominação mundial levado a cabo pelo homem
branco. Mas ela é também uma forma de criação de uma unidade cul-
tural entre povos oprimidos, de interesses comuns entre pessoas que
querem realizar o ideal de autonomia criada pela modernidade. O
sistema jurídico teve um papel central no processo de construção da
raça como uma categoria social porque ela sempre apareceu como um
parâmetro para o tratamento diferenciado entre os indivíduos ao lon-
go de boa parte do constitucionalismo moderno. Ela se tornou uma
141 Ver nesse sentido: AMATO, Salvatore. Il soggetto e il soggetto di diritto. Torino:
Giapichelli, 1990; MARTÍN VIDA, Maria Ángeles. Evolución del princípio de igualdad
y paradojas de exclusión. Madrid: Granada, 2004.

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