Punitive Damages e o Direito do Trabalho Brasileiro: Adequação das Condenações Punitivas para a Necessária Repressão da Delinquência Patronal

AutorRodrigo Trindade de Souza
Páginas103-135

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Ver nota 1

1. Introdução

Uma das muitas expressões do folclore que se formou em torno de Ernesto Guevara, o revolucionário cubano-argentino conhecido como Che, tem cenário nos primeiros anos após a revolução. Integrando-se nos esforços nacionais de produção e - não menos importante - como exemplo aos demais cidadãos da ilha, o então ministro da indústria ocupava os flnais de semana no trabalho de corte de cana. Numa dessas ocasiões, enquanto descansava, foi flagrado refrescando-se com uma garrafa de Coca-Cola. Imediatamente recebeu a repressão de seus companheiros de labuta sobre o mau exemplo de consumo do produto tido como símbolo da exploração econômica e do colonialismo cultural. Sem largar a garrafa, Che respondeu que ideologias, culturas e produtos não devem se confundir e que todos os benefícios e avanços, desde que aplicados com temperança, devem ser bem aproveitados, independentemente da origem2.

Embora não esconda certo utilitarismo, o argumento de Che parece voltar-se contra o que em retórica convencionou-se chamar de argumentum ad hominem: uma condenável prática argumentativa que, em vez de atacar o conteúdo de uma ideia, atentar-se apenas às suas circunstâncias e origens3.

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O instituto estrangeiro dos punitive damages - ou, na tradução que adotaremos, "condenações punitivas" - costuma ser visto com semelhante visão, escravizada pela origem. Assim agem tanto aqueles que advogam plena e irrestrita aceitação, com base na imposição dos "avanços" da tecnologia jurídica produzida no economicamente mais importante país do mundo, os EUA; como na não menos absoluta negação de utilização da modalidade punitiva-ressarcitória, em razão das diferenças culturais, econômicas e jurídicas entre o modelo brasileiro e o anglo-saxão.

Este trabalho não nega as profundas diferenças dos dois sistemas jurídicos, bem como a importância de atenção ao lugar como requisito de método. Por igual, procura manter-se permeável às experiências jurídicas estrangeiras e à possibilidade de adequações às realidades nacionais, como resultado de possíveis e esperados avanços dentro do macrossistema jurídico ocidental. Com essas premissas paradigmáticas, posteriormente neste trabalho, pretendemos lançar considerações sobre punitive damages e sua possível aplicação na responsabilidade civil trabalhista brasileira.

Em caráter preliminar tentaremos compreender de forma geral o funcionamento do modelo estadunidense de punitive damages. Como método, utilizaremos as fontes originais, preferencialmente as orientações fornecidas pelos órgãos de excelência de formação do direito, os tribunais superiores dos EUA.

Utilizando-se o conhecimento adquirido no capítulo pretérito, teremos oportunidade de debater as objeções nacionais que costumam ser dirigidas ao modelo em estudo. Seguindo-se o objetivo de construir uma possível síntese de compatibilidade, optaremos por utilizar método dialético de apresentação das críticas, análise da adequação de suas premissas e, efetivamente, apresentar nossas considerações sobre adequação jurídica.

Nos capítulos flnais temos a intenção de adentrar no universo do direito do trabalho. Para uma análise um pouco mais aprofundada, buscaremos compreender a forma com que outras ciências identiflcam os macrossigniflcados de contrato de emprego, empresa e delinquência patronal. Com esses referenciais estaremos, então, preparados para a análise propriamente dita de adequação, forma e necessidade de aplicação de punitive damages no campo das relações de emprego e seu manejo nas demandas individuais.

Por flm, e retomando conclusões parciais, apresentaremos nossas considerações flnais.

Este estudo está muito longe da pretensão de esgotamento das diversas questões que cercam os punitive damages e a responsabilidade civil trabalhista. O singelo objetivo é fornecer alguns elementos para possível compatibilização de tais construções jurídicas. Para tanto, pretende-se situar o método e o discurso em

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ambiente além da dogmática, estabelecendo-se diálogo pontual com a economia a sociologia e, essencialmente, com as inquietações de quem lida cotidianamente com a aplicação do direito do trabalho.

2. Características contemporâneas do modelo estadunidense de punitive damages

Não é possível uma tradução literal de punitive damages, pois conduziria a uma expressão em língua portuguesa desprovida de signiflcado jurídico4. Optamos pela locução "condenação punitiva", pois se constitui na flxação judicial de montante condenatório que não tem o objetivo imediato de compensação do dano, mas de efetiva repressão da conduta do ofensor. Em poucas palavras, busca-se pontuar a reprovação de certas condutas que ofendam o "sentimento ético-jurídico prevalente em determinada comunidade"5. Os motivos serão aprofundados com uma mais completa compreensão do instituto.

Chamada por alguns críticos anglófonos de smartmoney, punitive damages é expressão cunhada no direito norte-americano e que corresponde à expressão correlata britânica de exemplary damages. Em maior ou menor grau, são aplicadas em outros países de tradição de direito dos precedentes, como Austrália e Nova Zelândia6.

Embora tenha origem no direito do Reino Unido, analisaremos os atuais balizadores adotados no sistema dos Estados Unidos da América, país que os desenvolveu e aplica de forma mais recorrente e com rigor científlco.

As condenações punitivas são ordinariamente impostas quando as condenações compensatórias não se mostram como remédio adequado ou suflciente. Os órgãos de jurisdição costumam aplicá-las em situações de necessidade de aumento da compensação dos querelantes, quando haja objetivo de desestímulo na repetição da prática, para compensar delitos civis não perceptíveis ou reforçar punições criminais.

Apesar de haver utilização nos EUA desde o século XVIII, a partir de 1996 produziu-se intenso debate jurídico naquele país sobre o tema. A origem está na

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sistematização introduzida como resultado do julgamento do caso BMW vs. Gore, iniciado no estado do Alabama, mas que foi objeto de deliberação pela Suprema Corte.

Em janeiro de 1990, Dr. Ira Gore comprou um automóvel BMW 0 km em uma revenda autorizada da capital Birmingham. Após nove meses, levou o carro para manutenção e soube que o veículo fora, antes da venda, parcialmente repintado. Como resultado da descoberta, demandou judicialmente contra a montadora, alegando falha no dever de informação. A BMW conflrmou que houve repintagem de cerca de 1000 carros, desde 1983, para poder vendê-los como novos. Mas também admitiu que nunca informou aos compradores ou concessionárias sobre a prática.

Dr. Gore provou que houve desvalorização de cerca de US$ 4.000,00 com a repintura, obtendo condenação nesse montante a título de compensação. Todavia, o Juízo de Birmingham (Alabama Circuit Court) multiplicou esse valor pelo número total de carros que sofreram a "maquiagem" e também somou condenação de US$ 4 milhões para punitive damages. Analisando o recurso, a Corte estadual do Alabama reduziu essa condenação para ainda consideráveis US$ 2 milhões, mas apenas porque o valor trazia por elementos circunstâncias de outros estados da nação.

Pretendendo esclarecer a questão para futuros casos, a Suprema Corte norte--americana concedeu a avocação do processo, e teve a oportunidade de estabelecer três balizadores gerais em punitive damages: a) grau de repreensão da conduta; b) correspondência entre as condenações punitivas e o efetivo prejuízo produzido; c) a magnitude de sanções civis e criminais por condutas similares. Tais elementos serão mais bem identiflcados adiante.

  1. Grau de repreensão da conduta

    Pontuou a Suprema Corte que se trata do mais importante indicador de razoabilidade dos punitive damages7. Segundo LEVY, esse balizador reflete a aceitação pelo tribunal de que algumas faltas são mais censuráveis que outras e que o conceito de "razoabilidade" deve ser compreendido a partir da consideração da totalidade das circunstâncias do caso8. Todavia, certo é que a Corte expressamente referiu que o montante indenizatório deve observar o mínimo necessário para efetivamente pontuar a conduta reprovável do réu.

    No caso da BMW, a tribunal constitucional enumerou alguns fatores agravantes, indicativos de maior grau de repreensão: a) violência ou ameaça de danos físicos9;

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  2. negligência do réu ou desconsideração pela saúde ou segurança10; c) dolo11;

  3. uso de fraude ou simulação12; e) reincidência13; f) sofrimento psicológico do lesionado14; g) nos casos de danos econômicos, atos intencionais de conduta ilícita ou dirigidos à vítima flnanceiramente vulnerável15.

    Julgamentos estaduais que se seguiram relacionaram outros elementos agravantes para a flxação das condenações punitivas: h) participação de altos funcionários na formação das lesões16; i) condutas praticadas por cobiça17; j) condição do sujeito lesionante de detentor de posição privilegiada ou de conflança18; k) interesse estatal na prevenção da ilicitude particular19.

    Cortes estaduais dos EUA costumam também enumerar fatores minorantes para a flxação de condenações punitivas, como a participação de funcionários com baixo poder de decisão na formação das lesões; reconhecimento da responsabilidade pela ilicitude por parte do lesionante; e tentativa do causador do dano em mitigar os prejuízos.

    Em julgamento mais recente (State Farm Mutual Automobile Insurance Co. v. Campbell20) o órgão jurisdicional voltou ao tema, referindo que não é qualquer conduta que deve ser punida com condenações punitivas e que se deve inicialmente acreditar que a...

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