A Prescrição do Direito de Punir Deve ser Anotada nos Assentamentos Funcionais do Servidor Público? A Interpretação do Art. 170 da Lei Federal n. 8.112/90

AutorAntonio Carlos Alencar Carvalho
CargoProcurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública (Instituto Brasiliense de Direito Público)
Páginas15-20

Page 15

1. Introdução

Questão interessante concerne à interpretação do capitulado no art. 170 da Lei Federal n. 8.112/90: “Extinta a punibilidade pela prescrição, a autoridade julgadora determinará o registro do fato nos assentamentos individuais do servidor.”

A pergunta que se formula é: o dispositivo se aplica mesmo em caso da prescrição consumada antes da própria instauração de sindicância ou de processo administrativo disciplinar? Isto é, mesmo que o fato não tenha sido sequer apurado e não mais o possa ser, ainda assim deve-se anotar nos assentamentos funcionais oPage 16 cometimento de um ilícito que não se sabe sequer se efetivamente ocorreu, sem conhecer pelo menos a voluntariedade do servidor público e sua culpabilidade?

2. Distinção entre a prescrição do direito de punir e da pretensão punitiva

Primeira ponderação que se impõe concerne à distinção entre prescrição do direito de punir e prescrição da pretensão punitiva.

Sobre a prescrição do direito de punir vale apontar: como a prescrição se conta, inicialmente, pela data do fato (no caso de infração disciplinar constitutiva de crime: art. 142, § 2º, Lei n. 8.112/90, c.c. art. 109, Código Penal) ou pelo conhecimento da irregularidade pela Administração Pública (no caso de transgressões estritamente disciplinares: art. 142, § 1º, Lei n. 8.112/90), pode ocorrer a perda do direito de punir as faltas funcionais antes mesmo da instauração do processo administrativo disciplinar ou da sindicância, desde que decorrido lapso temporal superior àquele deferido legalmente para o exercício do poder disciplinar estatal.

Como a prescrição somente é interrompida em seu fluxo temporal, iniciado com o conhecimento do fato pela Administração Pública, pela instauração do processo administrativo disciplinar ou da sindicância punitiva (“A sindicância que tem o condão de interromper o fluxo do prazo prescricional é aquela chamada punitiva, em cujo término resulta penalidade de advertência ou de suspensão de até trinta dias [art. 145, II, Lei n. 8.112/90] e que possui natureza jurídica de autêntico processo administrativo disciplinar, informado pelo contraditório e pela ampla defesa”1), segue que a demora em proceder à abertura de feito sancionador processual ou sindicante pode representar a perda do direito de punir a infração disciplinar, excluindo a própria falta. É o que se chama prescrição do direito de punir.

A seu turno, a prescrição da pretensão punitiva é aquela que sucede após a tempestiva instauração de processo administrativo disciplinar ou sindicância apenadora, em virtude da retomada do prazo prescricional, outrora interrompido com a abertura do feito (art. 142, § 3º, Lei Federal n. 8.112/90), após cessados os efeitos da interrupção da prescrição depois do decurso de 140 dias da instauração do processo administrativo disciplinar e de 80 dias da deflagração de sindicância punitiva, na forma já cimentada pela jurisprudência23456 e pela doutrina7.

José Armando da Costa intitulava a prescrição do direito de punir de “mais favorável” e a da pretensão punitiva de “menos favorável”, ainda nos idos de 1981:

“A que ocorre antes da instauração do processo, chamaremos de prescrição mais favorável, a que ocorre depois, prescrição menos favorável. A prescrição mais favorável funciona, na realidade, como uma excludente de falta, posto que o funcionário com ela se beneficia nem é punido e nem irá a falta para o registro de seus assentamentos funcionais. Só difere da excludente pelo lado moral. A menos favorável elimina a imposição da punição. Essa doutrina está de acordo com o entendimento do DASP, senão vejamos o enunciado de sua formulação de nº 36: ‘Se a prescrição foi posterior à instauração do inquérito, deve-se registrar nos assentamentos do funcionário a prática da infração apurada’ (COLEPE, proc. nº 1.087/69; CGR, par. H-458/67, DO de 20.2.67).”8

3. A perplexidade de a prescrição do direito de punir render ensejo à anotação nos assentamentos funcionais

Não se pode deixar de pontuar a perplexidade que decorre da exegese do art. 170 da Lei Federal n. 8.112/90, quando estatui que “extinta a punibilidade pela prescrição, a autoridade julgadora determinará o registro do fato nos assentamentos individuais do servidor”, se porventura aplicada nos casos de prescrição do direito de punir.

Até se compreende o registro nos assentamentos funcionais na hipótese em que, verificado efetivamente o cometimento de ilícito administrativo, a respectiva pena não pôde, entretanto, ser aplicada pela circunstância de a Administração Pública (depois de processar o servidor, colher provas, ouvir-lhe a defesa e também a tese acusatória) decidir que a conduta do acusado é, de fato, típica e culpável (além de não estar agasalhada por excludente de ilicitude), mas se ver, genuflexa, impossibilitada de impor a sanção disciplinar, por causa da prescrição da pretensão punitiva.

O que assentada doutrina firma é que a prescrição consumada após a instauração tempestiva do processo disciplinar (prescrição da pretensão punitiva) deveria ser registrada, enquanto aquela consumada antes mesmo da abertura de processo administrativo disciplinar ou sindicância punitiva (prescrição do direito de punir) – o feito é aberto muito tardiamente –, não poderia render ensejo a anotações funcionais.

Com efeito, apesar da lei não distinguir (seria, numa primeira assertiva e mais apressada supostamente o caso de fazer incidir o brocardo “onde a lei não distingue ao intérprete não é dado fazê-lo”) quanto ao registro nos assentamentos funcionais, parece que reside certa coerência, à luz do princípio da razoabilidade, na tese de que, se o fato não pode sequer ser apurado, por força da prescrição do próprio direito de punir, afigura-se de alguma forma compreensível a linha doutrinária que, nesse caso, rechaça a anotação da prescrição, se o fato não pode sequer ser averiguado, por força do óbice prescricional, sem que ao menos se defira ao acusado, portanto, sequer chance de se defender e comprovar a improcedência do juízo por sua culpabilidade, visto que à Administração resta vedado proceder ao apuratório, por força da prescrição, mesmo motivo pelo qual parece igualmente razoável que esse mesmo fato não possa ser registrado nos assentamentos funcionais, pois não houve nem haverá ao menos a abertura do devido processo legal e da concessão do direito de defesa.

Mas como se compreender, à luz dos princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, fora a presunção da inocência, que um fato que não foi sequer apurado, porque a Administração Pública nem ao menos deflagrou uma sindicância investigativa, deva merecer registro (negativo, no mínimo implicitamente ao tachar o funcionário de transgressor) nos assentamentos funcionais do servidor público envolvido, sem que se possa aferir, na via do due process of law, a sua culpabilidade e as circunstâncias que se relacionam com o pretenso ilícito supostamente cometido.

Será que o servidor, referentemente ao pretenso ilícito, agiu abrigado por uma excludente de ilicitude (legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal, estado de necessidade, exercício regular de direito)? Será que foi plena sua voluntariedade, ou agiu sem dolo nem culpa, em circunstância de força maior, sob coação irresistível ouPage 17 em obediência hierárquica de ordem não manifestamente ilegal? O fato era realmente punível de acordo com o princípio da insignifcância ou da proporcionalidade? Será que terceiros não são os verdadeiros autores do alegado ilícito administrativo, em vez do servidor cujo nome se pretende negativar? Todas essas perguntas não podem ser simplesmente engavetadas com o juízo apriorístico de que o servidor cometeu um ilícito – e ponto final, em meio, quanto menos, a dúvidas da reprovação da sua conduta.

Enfim, quem não fica atônito diante de que o pretenso cometimento de uma infração funcional será escriturado contra determinado servidor...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT