Os serviços públicos como condição de possibilidade para a concretização dos direitos sociais fundamentais: o controle judicial da prestação dos serviços públicos no Brasil

AutorMaiquel Ângelo Dezordi Wermuth; Raquel Fabiana Lopes Sparemberger
Páginas121-149

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1 Introdução

O presente artigo12 tem por objetivo empreender uma análise sobre a importância do controle judicial no que diz respeito ao cumprimento das normas constitucionais estabelecedoras de direitos sociais fundamentais pela Administração Pública brasileira. Para tanto, parte-se da compreensão dos serviços públicos como condição de possibilidade para que os referidos direitos sejam efetivados, razão pela qual, na primeira parte do trabalho, busca-se demonstrar: a) a intrínseca relação que há entre os direitos sociais fundamentais e os serviços públicos; b) as normas constitucionais instituidoras desses direitos devem ser compreendidas como direito de aplicação imediata e não como mero programa e/ou recomendação constitucional; c) o descompasso existente entre a previsão normativa constitucional dos referidos direitos e sua implementação efetiva por parte do Estado brasileiro, identificando as origens históricas desta contradição.

Em um segundo momento, considerando o panorama deficitário que a prestação dos serviços públicos apresenta no Brasil, o trabalho volta-se para a análise da discussão acerca da legitimidade do Poder Judiciário para questionar e interferir nas decisões políticas sobre o tema. O marco teórico escolhido para desenvolver esta discussão é o debate travado entre os autores procedimentalistas – que defendem a ideia de que ao Judiciário e, em especial, às Cortes Constitucionais, compete tão somente a função de interpretar o Texto Político de forma procedimental, ou seja, limitando-se a proteger o processo legislativo democrático, não se alçando à condição de guardiães de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais –, e substancialistas compreendem que compete ao Judiciário, por meio, principalmente do controle de constitucionalidade das leis, resistir às ações dos Poderes Executivo e Legislativo que redundem na ineficácia dos direitos individuais ou sociais positivados constitucionalmente –, buscando-se verificar qual dos dois eixos teóricos melhor se ajusta à realidade brasileira.

Por fim, na terceira parte do trabalho, a análise direciona-se para o papel que vem sendo desempenhado no país pelo Poder Judiciário no controle da prestação dos serviços públicos pela Administração, em especial, no que diz respeito à atuação da jurisdição constitucional, buscando demonstrar que ela ainda assume posturas contraditórias que ora se identificam com as teses procedimentalistas e ora com as teses substancialistas.

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2 Os serviços públicos e os direitos sociais fundamentais: notas sobre a gênese e aplicabilidade nas normas constitucionais estabelecedoras de direitos sociais no Brasil

A noção de “serviço público” encontra-se diretamente relacionada ao advento dos direitos sociais – ou de segunda geração –, nos albores do século XX, sob a influência da Revolução Industrial e dos movimentos sindicais que redundaram, posteriormente, na sua incorporação às Constituições Mexicana (1917), de Weimar (1919) e, no caso brasileiro, à Constituição de 1934.

Esta relação viabiliza-se diante do fato de que os direitos sociais pressupõem uma postura ativa por parte do Estado, que deve colocar à disposição dos cidadãos prestações de natureza jurídica e material, de forma a viabilizar a fruição de tais direitos. Compete, pois, ao Estado, por meio das leis, atos administrativos e da criação real de instalações e serviços públicos, definir, executar e implementar as políticas sociais que facultem o gozo efetivo dos direitos assegurados constitucionalmente.

É justamente em virtude disso que os direitos sociais são:

Os chamados direitos de créditos, ou seja, os direitos que tornam o Estado devedor dos indivíduos, particularmente dos indivíduos trabalhadores e dos indivíduos marginalizados, no que se refere à obrigação de realizar ações concretas, visando a garantir-lhes um mínimo de igualdade e de bem-estar social. Estes direitos, portanto, não são direitos estabelecidos ‘contra o Estado’ ou direitos de ‘participar no Estado’, mas sim direitos garantidos ‘através ou por meio do Estado’).3

Assim, torna-se possível afirmar que “os direitos sociais representam uma mudança de paradigma no fenômeno do direito, a modificar a postura abstencionista do Estado para o enfoque prestacional”. Os direitos sociais, portanto, referem-se à possibilidade de se ter garantido, por meio da açãoPage 124 estatal, um mínimo de condições econômico-sociais para se viver com dignidade dentro de uma determinada comunidade política4.

Como assevera Sarlet:

Os direitos fundamentais sociais a prestações [...] objetivam assegurar, mediante a compensação das desigualdades sociais, o exercício de uma liberdade e igualdade real e efetiva, que pressupõem um comportamento ativo do Estado, já que a igualdade material não se oferece simplesmente por si mesma, devendo ser devidamente implementada. Ademais, os direitos fundamentais sociais almejam uma igualdade real para todos, atingível apenas por intermédio de uma eliminação das desigualdades, e não por meio de uma igualdade sem liberdade, podendo afirmar-se, neste contexto, que, em certa medida, a liberdade e a igualdade são efetivadas por meio dos direitos fundamentais sociais.5

Daí a relação fundamental que se estabelece entre os serviços públicos e os direitos sociais fundamentais, dado que aqueles são condição de possibilidade para concretização destes.

No entanto, ao se trasladar essa concepção de serviço público para a realidade brasileira, um primeiro paradoxo que se apresenta diz respeito ao fato de que, em que pese o Brasil ser uma das dez economias do mundo e ter uma Constituição extremamente avançada, dados estatísticos revelam que mais de vinte milhões de pessoas vivem abaixo da linha da indigência, ao passo que mais de cinquenta milhões vivem abaixo da linha da pobreza. Ou seja, não se vislumbra no país, nãoPage 125 obstante a positivação dos direitos sociais no Texto Constitucional6, a implementação, por parte do Poder Executivo, de serviços públicos em um patamar mínimo para a concretização efetiva desses direitos em igualdade de condições para todos os cidadãos, o que expõe a flagrante contradição que há no país entre a pretensão normativa dos Direitos Fundamentais Sociais e o fracasso evidente do Estado enquanto provedor dos serviços essenciais para a vasta maioria da população.7

Algumas considerações de índole histórica podem ajudar na compreensão de tal panorama, iniciando-se pela própria forma como tais direitos foram “conquistados” no Brasil. Ao contrário dos países centrais – dentre os quais se destacam os Estados Unidos, a Inglaterra e a França –, nos quais os direitos integrantes das três gerações (civis8, políticos9 e sociais) identificadas por Marshall10 são resultado de intensas batalhas que redundaram na sua consolidação paulatina no Brasil, dentre outros países periféricos, tal processo ocorreu de forma bastante peculiar.

De acordo com Santos11, nos países periféricos e semiperiféricos, a conquista desses direitos deu-se por meio de “curtos-circuitos históricos”, ou seja, “pela consagração no mesmo acto constitucional de direitos que nos países centrais foram conquistados num longo processo histórico (daí, falar-se de várias gerações dePage 126 direitos).” Ou seja, as gerações de direitos identificadas por Marshall como resultado da luta pela instituição da cidadania plena foram no Brasil, outorgadas pelo Estado e não conquistadas pelo povo.

Não obstante isso, no Brasil,12 a pirâmide dos direitos estabelecida por Marshall foi invertida, uma vez que a obtenção de direitos sociais ocorreu sem que os direitos civis e políticos estivessem consolidados. No caso brasileiro, segundo o referido autor:

Primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje, muitos direitos civis, a base da sequência de Marshall, continuam inacessíveis à maioria da população.13

Essa forma distorcida com que se deu a “conquista” das três gerações de direitos no Brasil ainda faz sentir seus efeitos na contemporaneidade, como destaca Castro, ao afirmar que, no país:

O alistamento eleitoral quase universal e as urnas eletrônicas (direitos de 2ª geração na ‘era da pós-modernidade’) convivem com a difusão de formas de trabalho escravo e com assassinatos de moradores de rua, privados não só do direito à moradia, mas também do direito à integridade e da liberdade de ir e vir (de 1ª geração).14

Diante desse panorama de insuficiência de organização institucional para sua concretização, decorrente justamente da noção de “curto-circuito constitucional” cunhada por Santos15, os direitos sociais fundamentais são tomados, majorita-Page 127riamente, como normas programáticas, ou seja, como meras metas ou finalidades a serem alcançadas pelo Estado em longo prazo, dado que, de imediato, sua efetivação se mostra impossível diante da falta de recursos orçamentários e de capacidade operacional por parte da Administração Pública.

No entanto, “a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como consequência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direito.”16 Nesse sentido, as normas...

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