A redefinição do espaço público e da cidadania no contexto da transnacionalização econômico-simbólica

AutorLivio Osvaldo Arenhart
CargoProfessor da Graduação, Especialização e do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado da URI, campus de Santo Ângelo.
Páginas113-126

Page 113

Introdução

Este texto trata da redefinição do espaço público e a da cidadania. Situarse de modo minimamente adequado na sociedade globalizada, especialmente a partir de 1989, requer a adoção de uma forma alternativa de exercício da cidadania. NãoPage 114basta cumprir papéis sociais em instituições que restringem sua atuação a funções políticas e espaços territoriais pré-fixados. Salta aos olhos de todos, por exemplo, o descrédito dos partidos políticos; ainda que sejam indispensáveis, são vistos como inoperantes ou contraproducentes, no que atine aos fins sociais pelos quais se justifica a sua existência histórica. Manifestamente, acumulam-se e globalizam-se frustrações e ódios por força da inoperância dos métodos tradicionais de resolver os problemas, seja em relação às empresas (mercado), seja em relação aos órgãos estatais (Estado). Neste contexto, em que cresce a tendência à desresponsabilização social, paradoxalmente, até mesmo a busca individualizada de soluções para os problemas – o “jeitinho” – tende a cair no vazio. Daí a pergunta: que lucidez é necessária para ser eficaz nas iniciativas de intervenção e participação política? Como compreender e exercer a cidadania no contexto da sociedade globalizada? Em que termos há que se redefinir a participação política? Para responder a essas perguntas, são invocados, majoritariamente, os pesquisadores Néstor García Canclini e Ilse Scherer-Warren.

1. Redefinição do espaço público

Atualmente, os códigos compartilhados que permitem que nos entendamos “são cada vez menos os da etnia, da classe ou da nação em que nascemos” (Canclini, 1999: 85-86). Várias décadas de construção de símbolos transnacionais criaram “uma cultura internacional-popular” (Canclini, 1999: 87; Ortiz, 1994: 104). No interior da sociedade globalizada de consumo, forjam-se referências culturais mundializadas. Personagens, imagens, situações, veiculadas pela publicidade, histórias em quadrinhos, televisão, cinema, Internet, constituem-se em substratos de uma memória internacional-popular, na qual se inscrevem as lembranças de todos (Ortiz, 1994: 126).

A “globalização do consumo urbano” e o “caráter transnacional do universo midiático” nos obrigam a “recolocar a questão do público” (1999: 92. 281; 2003b: 175). Foram borrados os contornos espaciais do público, de modo que “devemos reconhecê-lo com imagens de circuitos e fluxos que extrapolam os territórios” (2003b: 175). As metáforas espaciais ainda usadas para falar do público devem ser compreendidas “nesse sentido aberto e transterritorial” (Id. Ibid.). A esfera pública é redefinida por John Keane nos seguintes termos:

Um tipo particular de relação entre duas ou mais pessoas, normalmente vinculadas por algum meio de comunicação (televisão, rádio, satélite, fax, telefone, etc.), na qual se produzem controvérsias não-violentas, durante um tempo breve ou mais extenso, referentes às relações de poder que operam dentro de um meio de interação e/ou dentro dos âmbitos mais amplos de estruturas sociais e políticas em que os disputantes se situam (Apud Canclini, 2003b: 175).

Page 115

Ou seja, a esfera pública “não se esgota no campo das interações políticas, nem no âmbito do nacional” (Canclini, 1999: 281). Além das atividades estatais ou diretamente ligadas a atores políticos, o público abrange “o conjunto de atores – nacionais e internacionais – capazes de influir na organização do sentido coletivo e nas bases culturais e políticas da ação dos cidadãos” (Id. Ibid.); o espaço público transborda a esfera das instituições políticas clássicas; o público é o “marco midiático” (Id. p. 55).

Se é verdade que o público é o marco midiático, então a mídia tende a absorver a esfera pública e o “lobbysmo” se tornou uma das formas mais eficazes de política (2002: 62; 2003b: 22). Correspondentemente, depreciam-se as formas tradicionais de representação política.

Tratando da questão da reestruturação da cultura urbana e da protagonização do espaço público pelas empresas que atuam segundo o princípio da administração global, que tendem a subordinar a sociedade civil mundial a seus interesses privados e que controlam as tecnologias eletrônicas, Canclini não acredita que esteja havendo uma “substituição absoluta da vida urbana pelos meios audiovisuais”, submetidos à lógica do mercado (2003a: 290). Como não pode sedimentar tradições, não pode criar vínculos entre sujeitos, não pode gerar inovação social e tende mais a encobrir os conflitos do que a elaborá-los, o mercado não satisfaz o desejo desse algo mais que não é o entretenimento massificado e que é justamente o que está em jogo no intercâmbio entre culturas, nas diferentes esferas do espaço público (Canclini, 2003b: 184). Há entre o urbano e o comunicacional um “jogo de ecos”, de maneira que “a publicidade comercial e os lemas políticos que vemos na televisão são os que reencontramos nas ruas, e vice-versa: umas ressoam nas outras” (Canclini, 2003a: 290).

Essa circularidade entre o urbano e o comunicacional subordina, mas não consegue soterrar totalmente os testemunhos da história, o sentido público construído em experiências de longa duração. Por essa e outras razões, “a videopolítica não se converteu na única cultura” (Canclini, 1999: 267). Os melodramas, que continuam tendo repercussão na televisão e em outros meios, assim como as reflexões críticas e os movimentos sociais de oposição, levantam “indagações sobre o reconhecimento entre os homens e sobre o conflito entre os grupos” (Id. Ibid.). As astúcias da videopolítica são insuficientes para reduzir as epopéias populares a simulacro ou extraviá-las na voragem de espetáculos esportivos, musicais e telenovelescos (Id. p. 286).

Notoriamente, as cidades se encontram dilaceradas pelo crescimento errático e por um multiculturalismo conflitante, tanto que constituem o cenário em que melhor se manifesta o declínio das utopias que imaginaram um desenvolvimento humano ascendente e coeso através do tempo. Essa é, entre outras coisas, a razãoPage 116pela qual ganharam ibope os movimentos sociais urbanos e as ações fragmentárias e fugazes (Id. p. 154).

Dos contatos sociais diretos, da confiabilidade e das identidades ideológicas – identificações personalizadas, diretas –, que vão se construindo no desenvolvimento das ações coletivas, típicas das ações políticas locais, decorrem as redes sociais primárias, por meio das quais, entre outras coisas, os novos atores da globalização, dentre eles os movimentos sociais e as Organizações Não- Governamentais (ONGs), “levam a efeito suas ações translocais e transnacionais” (Scherer-Warren, 1999: 83-84). Relativamente aos resultados dessas ações translocais e transnacionais, convém ser modesto, embora não pessimista. Os movimentos ecológicos, de direitos humanos, de mulheres, de jovens, entre outros, manifestam publicamente a recusa à dominação (Canclini, 1999: 46-47). Porém, ainda que expressem resistência, pode acontecer que se detenham na reação corporativista contra a crise (Id. p. 284); pode acontecer que absolutizem o enquadramento territorial originário das etnias (Id. p. 144). Talvez seja por isso que esses movimentos, pretendendo construir alternativas aos partidos e governos, “não conseguiram erigir em nenhum país projetos globais e, menos ainda, políticas que reestruturem os aparelhos estatais e as economias em declínio” (Id. p. 284).

É bem verdade que os meios eletrônicos “fizeram irromper as massas populares na esfera pública”(Id.p.50)2. Mas, por outro lado, os movimentos de esquerda ou simplesmente democráticos têm se mostrado pouco capazes “para atuarem nos cenários estratégicos decisivos da economia, da política e da comunicação, que são os cenários dos meios eletrônicos” (Id. p. 56. 129). Ora, sob o aspecto político, restringir o exercício da cidadania ao nível local ou nacional se compara a “enfrentar a Sony ou a Nestlé com estratégia de varejista” (Id. p. 280). Enquanto as ações de massa não desenvolverem intervenções adequadas à extensão e eficácia da mídia, prevalecerão “as dissidências atomizadas, os comportamentos grupais erráticos, conectados mais pelo imaginário do consumo e menos pelos desejos comunitários” (Id. p. 287).

A eficácia dos movimentos urbanos, étnicos, juvenis, feministas, de consumidores, ecológicos, etc., depende “da reorganização do espaço público. Suas ações são de baixa ressonância quando se limitam a usar as formas tradicionais de comunicação... Seu poder cresce e atuam nas redes massivas...” (Canclini, 2003a: 288). Canclini insiste na idéia de que houve uma mudança estrutural nas “condições em que a sociedade civil pode falar consigo mesma” e que, pelo fato de as maiorias se informarem nos meios eletrônicos, devem-se fazer neles os debates de interesse público (1999: 56. 287). Esse pesquisador reconhece que os...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT