Public security in Brazil: a critique of the intellectual production/ Seguranca publica no Brasil: uma critica sobre a producao intelectual.

AutorPradal, Fernanda Ferreira

Introducao

O presente artigo se propoe a contribuir com a reflexao critica e interdisciplinar sobre a producao intelectual como um dos elementos importantes na abordagem do problema da violencia urbana e os dispositivos securitarios contemporaneos no Brasil. (1) Analisa-se, assim, a producao intelectual sobre 'seguranca publica' no Brasil e a natureza teorico-politica da matriz da corrente identificada como dominante no campo intelectual mais amplo sobre violencia, crime e seguranca publica. Para isso, o artigo esta dividido em duas partes: na primeira, sao articuladas ferramentas teoricas de Michel Foucault e Pierre Bourdieu sobre a producao intelectual-especialista; na segunda, e apontada a insuficiencia teorico-analitica do que se denominou perspectiva jurisdicista-liberal, a partir de perspectivas teoricas sobre o Estado que articulam o pensamento de Nicos Poulantzas e de Michel Foucault.

Assim, na primeira parte, serao trabalhadas a questao relativa ao lugar do intelectual-especialista e o campo intelectual enquanto terreno especifico, assim como a questao relativa a inevitabilidade e constitutividade da dimensao teorico-politica nessas analises. Na segunda parte, sera problematizada a insuficiencia teorico-analitica de abordagens jurisdicistas liberais, tomando-se como universo tematico privilegiado a chamada 'seguranca publica'. Por fim, serao apresentados apontamentos conclusivos.

E importante ressaltar que nao se pretende analisar a questao da 'seguranca publica' no Brasil no sentido dos projetos de poder e das estrategias correspondentes, mas sim compreender o campo intelectual e seu modo de operar e produzir verdade, enquanto um componente de qualquer projeto de poder. O que move esta critica e a percepcao de que nao somente uma especie de consenso, ou horizonte, teorico liberal sustenta um conjunto heterogeneo de analises sobre seguranca publica, como tambem este conjunto de producoes intelectuais-especialistas tem figurado como o limite do debate. E, alem disso, que muitas vezes podem ter papel fundamental tanto na construcao ou na legitimacao (mais ou menos direta) de politicas de seguranca organizadas e implementadas a partir do Estado, quanto na producao da informacao, na formacao da percepcao ou 'opiniao publica', por meio do lugar que muitas vezes ocupam nos meios de comunicacao.

Esta pesquisa foi desenvolvida durante o mestrado no Programa Posgraduacao em Teoria do Estado e Direito Constitucional do Departamento de Direito, orientada pelo Prof. Jose Maria Gomez e defendida em 2013 (PRADAL, 2013). E importante ressaltar que seu disparador foi o instigante olhar de Vera M. Batista, que apontou uma especie de cooptacao da sociologia brasileira pelo paradigma da seguranca com suas consultorias pretensamente neutras e tecnicas. No prefacio ao livro de Edson Lopes "Politica e Seguranca Publica" (LOPES, 2009), a autora ressalta este olhar:

[...] Edson Lopes apresenta uma novidade na economia da pena: a simbiose entre o mercado da seguranca e a seguranca para o mercado. Um dos seus aspectos mais assustadores sera a privatizacao e a policizacao da Academia: movimentos sociais, nucleos de violencia, cidadanias, sociedades civis e organizadas, sociologias direitos humanos, tudo agora dirigindo-se para a construcao da expansao do poder punitivo em todas as direcoes (BATISTA, 2009a: 10).

A sociologa, em uma entrevista, tambem aborda o que tem denominado de 'sociologia colaboracionista' ou 'policialesca' ou 'a terceira via', a quem atribui um discurso "liberal, funcionalista e acritico" (BATISTA, 2009b; 2012a: 14), que atua em diversos estados. Esta sua percepcao e demonstrada em trabalho posterior sobre a politica de 'pacificacao' no Rio de Janeiro, em que identifica as injuncoes entre gestao governamental, meios da grande midia e sociologos (BATISTA, 2011: 6).

A partir deste olhar critico, a presente pesquisa propos-se a trabalhar a producao intelectual, a investigar os referenciais teorico-politicos pressupostos e afirmados por especialistas em seguranca publica e analisa-los. Portanto, uma analise no terreno da teoria politica, mas que abre a reflexao e o debate sobre possiveis limites analiticos de algumas producoes. (2)

Na investigacao realizada, percebeu-se que um campo de producao intelectual tem sido afirmado, identificado, analisado e reivindicado ao longo de sua formacao assim como em esforcos bibliograficos de revisao, balanco ou avaliacao do estado da arte da producao intelectual atribuida a este campo, pelo menos nos ultimos vinte e tres anos, realizados por intelectuais pioneiros (3) ou precursores. Dentre eles, estao balancos bibliograficos que foram fundamentais no mapeamento realizado, como aqueles publicados por Sergio Adorno (ADORNO,1993); Alba Zaluar (ZALUAR, 1999); Roberto Kant de Lima, Michel Misse e Ana Paula Miranda (KANT DE LIMA, MISSE e MIRANDA, 2000); e dois estudos sobre esse campo, um coordenado por Renato de Lima (LIMA, 2009) e outro realizado por Sergio Adorno e Cesar Barreira (ADORNO e BARREIRA, 2010). Alem destes, foram fundamentais os livros: "As Ciencias Sociais e os Pioneiros nos Estudos sobre Crime, Violencia e Direitos Humanos no Brasil" (LIMA e RATTON, 2011), que traz entrevistas com os principais nomes da intelectualidade desse campo tal qual identificados por seus organizadores e apoiadores (Forum Brasileiro de Seguranca Publica e a Associacao Nacional de Pos-graduacao e Pesquisa em Ciencias Sociais ANPOCS); (4) e "Crime, policia e justica no Brasil", coletanea publicada em 2014 (LIMA, RATTON e AZEVEDO, 2014).

Com o mapeamento e a analise da producao intelectual sobre seguranca publica, foi possivel identificar rupturas, adesoes e especificidades que ensejam, historicamente, a delimitacao dessa corrente liberal, a partir das contribuicoes que dao corpo e significado a existencia desses universos intelectuais do campo e da corrente liberal sobre seguranca publica. Neste esforco, foi formulada uma proposta de periodizacao do processo de formacao do campo intelectual mais amplo entre 1970 e 2010. Foram apontados elementos, debates, embates politicos, atores sociais e linhas tematicas constitutivas desse campo (PRADAL, 2013: 52-99). (5) No interior deste campo percebeu-se que essas linhas acumulam temas e perspectivas especificas que, em um determinado momento, com o objetivo de formular solucoes para a chamada 'seguranca publica' enquanto um 'problema social', passaram a engendrar teses, formulas, programas, tecnicas etc., articuladas em um regime de verdade. E, entao, a partir da acumulacao de linhas tematicas e perspectivas politicas em nivel analitico e em nivel teorico que e construida esta corrente' liberal especialista sobre seguranca publica, cuja problematizacao abriu caminho para as questoes aqui apresentadas.

I--O campo sobre violencia, crime e seguranca publica e o intelectual-especialista: politica e producao de verdade

Para a problematizacao e compreensao do universo intelectual, seu funcionamento e suas possiveis posicoes de poder, e operativa a articulacao das ferramentas teoricas oferecidas por Pierre Bourdieu e Michel Foucault. O pensamento de Bourdieu, desenvolvido na decada de 1970 para caracterizar sociologicamente o universo cientifico, a natureza do discurso cientifico e da 'cientificidade' e a producao do que chamou de 'sociologia oficial', oferece as nocoes de campo e capital cientificos que sao cruciais para uma analise sobre a politica da producao intelectual (BOURDIEU, 2004). Essas nocoes, para os fins aqui propostos, podem ser sintetizadas em alguns pontos (6):

(i) Para se compreender dada producao intelectual, nao bastaria uma referencia ao texto ou ao contexto mais amplo, pois entre estes dois polos ha um universo intermediario que Bourdieu chama de campo, em que estao inseridos agentes e instituicoes que produzem e reproduzem a 'ciencia'. O campo intelectual, como outro qualquer, e formado por suas relacoes de forca, monopolios, lutas, estrategias, interesses e lucros e e um universo em que essas invariantes revestem-se de formas especificas. O autor caracteriza este universo como um espaco estruturado de posicoes ou uma configuracao de relacoes objetivas (CHAMPAGNE e CHRISTIN, 2012). A estrutura dessas relacoes objetivas entre os agentes e que constitui os principios do campo, e o que implica em determinados pontos de vista, em determinadas intervencoes cientificas, em lugares de publicacao, em temas escolhidos, em objetos de interesse (BOURDIEU, 2004). Ou seja, somente se compreende o que faz ou diz um agente engajado num campo a partir da posicao que ele ocupa na estrutura de relacoes, porque esta estrutura condiciona ou determina o que fazem ou nao os agentes. (7)

(ii) Esta estrutura do campo e determinada pela distribuicao do capital cientifico em um determinado momento. Os agentes sao caracterizados por seu volume de capital e determinam a estrutura do campo em proporcao a esse volume, que sempre depende de todos os outros agentes, de todo o espaco (BOURDIEU, 2004: 24 e 25). Nesse sentido, notam Champagne e Christin, o campo deve ser pensado como relacional. E um campo de forcas no qual os agentes se enfrentam em funcao de estrategias que lhes ditam o volume e a reparticao do capital cientifico e, a partir dele, sua posicao na estrutura de relacoes (CHAMPAGNE e CHRISTIN, 2012: 158 e 159). Bourdieu define o capital cientifico como uma forma especial de capital simbolico, fundado sobre atos de conhecimento e reconhecimento. Ou seja, consiste no reconhecimento atribuido pelo conjunto de pares-concorrentes no interior do campo cientifico. Exemplos de indicadores de capital cientifico sao: citacoes, premios, traducoes estrangeiras, entre outros. Dessa forma, o capital repousaria sobre uma competencia que proporciona autoridade e contribui para definicao de regras do jogo: as leis de distribuicao dos lucros nesse jogo, as leis sobre a importancia dos temas, aquilo que e brilhante ou ultrapassado, onde e mais compensador...

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