A Psicografia no Direito Processual

AutorFernando Rubin
Páginas29-35

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I Introdução
  1. Estamos presenciando nos últimos anos calorosa discussão a respeito da utilização da prova psicografada no processo brasileiro, existindo projeto de lei que tenta proibir o uso da prova psicografada (n. 1.705/07), tendo sido, a respeito, ouvidos inúmeros juristas que se posicionaram de maneira antagônica com relação à possibilidade de utilização de uma carta escrita do além-túmulo em processos judiciais, de natureza penal ou mesmo cível1.

Busquemos, pois, sintetizar os argumentos que vêm sendo desenvolvidos, por ambas as correntes, a fim de apresentarmos um esboço contemporâneo sobre a possibilidade de utilização da psicografia e, principalmente, sobre o peso que tal prova não tipificada em lei pode atingir para auxiliar a decidir um processo judicial.

Para tanto, faz-se necessário investigar a origem e o desenvolvimento científico do espiritismo, trazer à baila alguns intelectuais importantes, do Brasil e alhures, que estudaram o fenômeno (como Monteiro Lobato e Cesare Lom-broso), para que possamos com maior convicção defender a utilização deste meio lícito de prova.

Analisaremos, ademais, alguns casos judiciais já solvidos, em que se fez uso racional da prova psicografada, a fim de confirmarmos a tese de sua admissão e do modo como escorreitamente deve ser valorada no cenário processual.

Frise-se, por oportuno, que o ensaio é fruto de uma maior reflexão do tema junto a grupo de estudo formado na Associação Jurídica Espírita do Rio Grande do Sul (AJE/ RS)2, a partir de esboço já publicado pelo autor a respeito das "provas atípicas"3.

II A carta psicografada e o espiritismo
  1. A psicografia é uma manifestação de prova espírita que representa o ato de escrever exercido por uma pessoa dotada de certa capacidade espiritual (médium) em face de influência direta recebida de um espírito que dita a mensagem4, ou, em palavras mais singelas, "é a escrita de um espírito realizada através do médium"5

    A carta psicografada é um dos mecanismos, segundo o espiritismo kardecista, que comprova a comunicação dos vivos com os mortos. Por certo, não é a única, mas uma das mais convincentes na demonstração de que existe vida após a morte e de que os espíritos, em geral, possuem suficiente noção da sua situação no plano espiritual, a ponto de trazer relatos da sua atual moradia espiritual e, principalmente, recordações de sua passagem pela Terra como também das relações pessoais travadas no nosso planeta.

    Em interessante obra de Sonia Rinaldi, de repercussão internacional, concluiu-se pela existência dos espíritos por meio de pesquisas avançadas em transcomunicação instrumental, ou seja, pelas gravações de sons demonstrou-se a sobrevivência da alma6. Já foram também constatados e estudados com profundidade os fenômenos de materialização e incorporação, além da tiptologia - primeira, e mais rudimentar, das provas de

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    comunicação "dos mortos com os vivos", por meio de barulhos emitidos em objetos ou movimentação destes em respostas a determinadas indagações dos encarnados (v.g. mesas giratórias)7.

    Mais afeito ao nosso tema, estudo bastante significativo foi realizado pelo experiente expert grafotécnico Carlos Augusto Parandréa (perito judiciário em documentoscopia desde 1965 no Paraná), que, em meticulosa análise de uma carta psicografada em 22/07/1978 por Chico Xavier, na língua italiana (desconhecida do médium), atribuída e assinada por Ilda Mascarro Saullo (falecida em Roma, no dia 20/12/1977), revela que "a mensagem contém em 'número' e em 'qualidade' consideráveis e irrefutáveis características de gênese gráfica8 suficientes para a revelação e identificação de Ilda Mascaro Saullo como autora da mensagem questionável", conferindo ainda maior credibilidade às suas conclusões ao dispor, o autor, que "na prática, em mais de 25 anos de perícias, centenas de resultados positivos foram alcançados em menor quantidade de material do que o coletado para esta pesquisa"9.

    Recentemente, merece registro a obra do jornalista Marcel Souto Maior, também comprovando a existência de efetivas comunicações entre vivos e mortos, sendo um dos casos mais emblemáticos narrados no livro a psicografia do médium Waldo Vieira de um romance com 322 páginas, assinado por Honoré de Balzac. Tal romance foi levado à análise rigorosa do mais importante estudioso da obra de Balzac no Brasil, o professor Osmar Ramos Filho, que após sete anos de pesquisa, encontrou cerca de duas mil semelhanças da obra psicografada com as obras em vida do mestre, o que o fez concluir, sem hesitação, ser um autêntico romance de Balzac10.

  2. Realmente, muitos foram os cientistas e mesmo ilustres intelectuais que pesquisaram a fundo, de maneira séria, o espiritismo e acabaram se convencendo da possibilidade de relação dos vivos com os mortos - sendo relevante exemplificarmos a questão com mais elementos. Em interessante artigo para o jornal Estado de São Paulo, Miguel Reale Jr.11 destaca a trajetória de Cesare Lombroso, famoso criminalista italiano, que após muito estudo (e resistência na aceitação do fenômeno espiritual), escreveu em 1909 o livro Hipnotismo e mediunidade, em que faz uma consistente síntese das experiências mediúnicas, mostrando a analogia entre o que sucedeu com os povos antigos, com os indígenas, com os fenômenos ocorridos na Idade Média ou no Renascimento e com o que sucedeu naqueles dias vividos por ele na presença de outros renomados cientistas.

    Em terras brasileiras também interessante os relatos de experiências mediúnicas desenvolvidas pelo escritor Monteiro Lobato, entre 1943 e 1947. Embora as mensagens obtidas não estivessem vinculadas aos procedimentos normais e regulares da psicografia, como adverte Vladi-mir Polízio12, nem por isso deixam de ter importância e de merecer o valor que lhes é conferido. O material todo, referente ao período de pesquisas, compõe a obra Monteiro Lobato e o espiritismo e foi coletado por Maria José Sette Ribas - que recebia a cada reunião relatório do que ali se passava.

    São, de fato, inúmeros os relatos, no Brasil e alhures, de situações similares, de pesquisa e comprovação da atividade mediúnica, de comunicação bem sucedida com o plano espiritual e, consequentemente, de reformulações daqueles que anteriormente levantavam dúvidas sobre o fenômeno espiritual, e especifi-camente o psicográfico, e que passaram a reconhecer como possível, verdadeiros e espontâneos tais atos. O jurista Miguel Timponi (que viria a ser depois um dos fundadores da Ordem dos Advogados do Brasil e seu primeiro presidente), para citarmos um derradeiro exemplo vigoroso, relata vários desses casos na obra A psicografia ante os tribunais, destacando estudos psíquicos robustos realizados principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, na Itália, na Alemanha e na França13, não deixando dúvidas a respeito de temas instigantes como a imortalidade da alma, o fenômeno reencarnascionista e a plena capacidade da entidade espiritual reproduzir, com nitidez, os acontecimentos que presenciou ao longo da sua passagem terrena.

III A admissibilidade da psicografia no processo -trata-se de prova lícita?
  1. Entendemos que a admissibilidade da prova psicografada se baseia, antes de qualquer outro elemento, na cientificidade que envolve o fenômeno espírita14. Daí a necessidade dos esclarecimentos deduzidos no ponto anterior, relacionados à fidedignidade de informações dando conta da comunicação dos entes encarnados com os entes desencarnados - seja por meio da carta psicografada, seja por meio de outros elementos (como gravação sonora, v.g.).

    Apesar da incredulidade de muitos15, pode-se, portanto, afirmar que o espiritismo é uma ciência, a qual tem por objeto a existência de vida após a morte e a, consequentemente relacionada, imortalidade da alma, em busca de constante evolução espiritual a ser adquirida ao longo das sucessivas reencarnações que se procedem16.

    Relevante ser registrado que, como afirma Nemer da Silva Ah-

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    mad, nenhuma das correntes dos opositores ao uso da prova psico-grafada logrou analisá-la à luz da ciência; geralmente a repelem ao argumento de ser produto exclusivo da fé, o que se demonstrou ser inexato17. São, como procuramos exemplificar, já inúmeras as obras e experiências, iniciadas no século XVII, que tratam das relações estabelecidas entre encarnados e entidades espirituais a estabelecer dados concretos no sentido da correção das bases científicas nas quais se funda a doutrina espírita -devidamente explicitada por Allan Kardec18.

  2. Também se deve admitir a prova psicografada no processo porque, se se pode criticar a utilização desta prova espírita em razão de fraudes ou erros na captação da mensagem, não é menos acertado se reconhecer que há possibilidade de fraudes e incorreções em qualquer outro meio de prova, atípico ou típico.

    Em outros termos, a falibilidade das provas, em razão da imperfeição humana, é fenômeno que obviamente não se circunscreve exclusivamente à psicografia. Com efeito, documentos falsos ou imprecisos não são raros nos processos judiciais; também presenciamos, em algumas oportunidades, imprestáveis laudos periciais, confeccionados sem muitos dados técnicos e/ ou em tempo diminuto não suficiente para abordagem de todas as nu-ances envolvidas em um complexo caso concreto. Por outro lado, não se pode olvidar a presença de testemunhas que faltam com a verdade em seus depoimentos ou afirmam, com convicção, terem presenciado determinada cena que, na verdade, não ocorreu exatamente na forma narrada.

    Por isso, partindo-se desse argumento comparativo, não compactuamos com opiniões de juristas contrários à tese aqui...

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