Psicodinâmica do trabalho e direito do trabalho: uma aproximação introdutória

AutorMaria Cecília Máximo Teodoro/Márcio Túlio Viana/Cleber Lúcio De Almeida/Sabrina Colares Nogueira
Páginas79-89

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Neste texto, pretende-se fazer uma apresentação introdutória da interface transdisciplinar entre o Direito do Trabalho e a Psicodinâmica do Trabalho, que tem caracterizado diversas pesquisas que vêm sendo desenvolvidas no sentido de expressar o enlace entre algumas questões que se devem considerar essenciais ao Direito do Trabalho, como subjetividade, identidade, saúde psíquica, organização do trabalho, reconhecimento, dignidade humana, direitos fundamentais do trabalhador e práticas éticas e políticas no trabalho.

É claro que essa interface não esgota o espaço de outras interlocuções transdisciplinares do Direito do Trabalho, mas propõe-se que este seja um recurso necessário desse ramo do direito, no sentido de resgatar, para além da regulação das condições de compra e venda da força de trabalho, o papel do direito em proteger o trabalho vivo, a corporalidade humana fonte de todo valor. Se, de um lado, o Direito do Trabalho que conhecemos foi fruto de uma grande conquista da crítica social, em termos de perceber que o trabalho é especialmente uma relação social de dominação que transcende a relação de trabalho face a face, por outro, parece que acabou-se limitando quase que inteiramente seu campo de incidência às condições de compra e venda da força de trabalho, externas ao trabalhar. Ficou obscurecida a vivência individual e coletiva do trabalho em sentido concreto, ao ponto que não seria uma injustice afirmar que o Direito do Trabalho, de modo geral, pouco capta do trabalho que é seu campo de incidência. É esse o deficit que a Psicodinâmica do Trabalho, junto com outras ciências do trabalho nos permite resgatar.

Procede-se a uma exposição sintética das principais categorias e teses adotadas pela Psicodinâmica do trabalho, a partir de que se indica, como principal ponto de contato com o direito, a contribuição para reconstrução normativa da noção de direito fundamental ao trabalho.

1. O recurso às ciências clínicas do trabalho

A importância de recorrer a disciplinas não jurídicas e em especial à Psicodinâmica do Trabalho, para dar conta da tarefa de fazer jus à tutela da dignidade humana no trabalho decorre de dois aspectos. Primeiro, as ciências do trabalho são essenciais para o direito compreender o que é o trabalho, como atividade concreta e como relação social e a centralidade do trabalho para as pessoas, especialmente para compreender o papel que as condições de trabalho têm como mediação para realização de necessidades humanas que transcendem em muito a subsistência. Não só as condições de compra e venda da força de trabalho e as clássicas condições químicas, físicas e biológicas do ambiente laboral, mas especialmente condições estruturais, inclusive econômicas, e as condições organizacionais de trabalho, precisam ser situadas em relação à concretude da vida humana.

Mas, indo além disso, gostaria de sustentar, também que, tomando-se a centralidade do trabalho para o sujeito, é a própria noção constitucional de dignidade humana que precisa passar pelo diálogo com as ciências do trabalho, para compreender as relações entre subjetividade, desenvolvimento da personalidade e construção da identidade, autonomia, saúde, aprendizado ético, participação social, ação pública, desenvolvimento sustentável e o trabalho. Se analisarmos a Constituição Brasileira, assim como os documentos internacionais de direitos humanos, percebe-se que o trabalho é muito mais que o fundamento de um setor específico do discurso constitucional e do direito internacional. O trabalho é um elemento essencial da própria noção constitucional de pessoa e das relações de solidariedade entre elas na construção de suas formas de vida digna. Essa é a matriz antropológica que está especialmente evidente na Constituição brasileira de 1988, de cujos dispositivos deflui um vínculo indissociável entre dignidade e trabalho.

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Esse vínculo não se desmente pela possibilidade de, em algumas situações individuais, ter-se uma vida digna de ser vivida sem um trabalho formal, fato que não se nega. Primeiro, porque, o trabalhar transcende em muito as formas de trabalho formal remunerado. Segundo, eis que, de modo geral, o ser social em nossa sociedade gira em torno do trabalho, a despeito de exceções individuais. Terceiro, vez que, mesmo individualmente, é muito mais provável ter-se uma vida cheia de sentidos trabalhando que sem trabalhar. Isto determina que o direito ao trabalho (não só ao trabalho assalariado) seja um direito de toda pessoa.

O fato de que não se possa recorrer a uma verdade absoluta sobre os conteúdos das necessidades humanas não implica que se possa esvaziar o sentido das decisões políticas fundamentais tomadas na Constituição, transformando bens essenciais em abstrações sem conteúdo normativo concreto. Trata-se de compreender qual é, afinal, a relação entre dignidade humana e a vida no trabalho? O que é essencial para os sujeitos concretos em sociedade no campo do trabalho e quais os problemas que isso traz em uma sociedade baseada justamente na compra e venda da força de trabalho para a produção de valor?

Estas são questões que o direito não pode responder de modo autorreferente e depende de um diálogo intenso com as ciências do trabalho e em especial as ciências clínicas do trabalho, expandindo transdisciplinarmente o campo do direito.

2. A centralidade do trabalho para a psicodinâmica do trabalho

Há pelo menos duas formas de ver o trabalho. O trabalho pode ser compreendido no sentido de um mal necessário, algo que em si é ruim ou, se muito, é neutro, mas que serve como instrumento para outras coisas: a produção, o salário, os bens que se adquire, e que por sua vez realizam e atualizam necessidades humanas, etc. Isto lhe dá uma posição que, mesmo de destaque na vida social, é meramente instrumental. Mas o trabalho pode ser compreendido mais além dessa condição de principal plataforma de acesso a bens socialmente produzidos — o que em nada é desprezível, ressalte-se, mas pode ser insuficiente. Pode-se, desde logo, compreender o próprio trabalho como um bem, como conjunto de atividades e relações que realizam necessidades absolutamente centrais para a corporalidade humana, em seu sentido mais completo, que engloba a integralidade psicofísica e social humana1. O trabalhar, ele próprio, é o expressar de uma necessidade humana que, a par de destinar-se a produzir bens que realizam e transformam historicamente nossas necessidades, também realiza, no próprio trabalhar, necessidades humanas fundamentais. Nesse sentido, o trabalho deixa de dizer respeito apenas a algo que se tem ou não, para significar que o trabalhar é uma dimensão central daquilo que se é, enquanto vida humana.

Esta segunda perspectiva promove um giro paradigmático em relação à primeira e atinge em cheio a compreensão jurídica do trabalho, pois se este na nossa sociedade é só um mal, quando muito um mal necessário — e certamente a realidade da alienação e exploração no trabalho dá boas razões a essa forma de pensar —, falar de um “direito ao trabalho” seria um absurdo, uma espécie de “direito masoquista”. Mas se consideramos que o trabalho tem um papel constitutivo para o desenvolvimento da corporalidade, a conquista da saúde, a construção da autonomia individual e coletiva, e quiçá para a emancipação, a despeito de todos os riscos e males que de fato se constatam, em termos de alienação, exploração, adoecimento, cinismo, a importância daquilo que se passa no próprio trabalhar cotidiano das pessoas — o trabalho concreto — e não só as condições de compra e venda da força de trabalho, passa a interessar fundamentalmente às pessoas que vivem do trabalho.

A Psicodinâmica do Trabalho (PDT) é uma disciplina que sustenta esta segunda posição, que afirma a centrali-dade do trabalho para o sujeito: para o bem ou para o mal, o trabalho jamais é neutro2. Ela é uma disciplina que se afirma a partir dos anos 90 em torno da obra do Psiquiatra e psicanalista francês Christophe Dejours e que se nutre dos estudos em Ergonomia da Atividade (Alain Wisner) e Psicopatologia desenvolvidos na França na segunda metade do século XX, assim como da teoria social crítica, integrando subjetividade, trabalho, saúde e teoria social. Trata-se, de uma parte, de uma disciplina clínica, baseada na pesquisa-ação em campo sobre as relações entre trabalho, subjetividade e saúde psíquica, cuja matriz fundamental é a psicanálise (especialmente em torno da teoria da sedução de Jean Laplanche) e, de outro lado, de uma disciplina teó-rica que procura conciliar, ao mesmo tempo, uma teoria do sujeito compatível com a psicanálise e a teoria social, com diálogo importante com autores das gerações recentes da Escola de Frankfurt.

Segundo Dejours, a PDT se autonomiza da psicopatologia do trabalho, ao perceber que o grande enigma a desvendar não é o porquê e o como as pessoas adoecem psiquicamente no trabalho. Este era o intento de uma das obras mais conhecidas do autor no Brasil, A Loucura do Trabalho, publicada originalmente em 19803. Mas nos anos que se seguiram, o centro da questão deixa de ser esse para enfrentar-se o enigma muito maior de como as pessoas fazem para não adoecer no trabalho. Como elas conseguem permanecer em condições de normalidade diante de práticas de trabalho patogênicas e, além disso, como podem se valer da vivência no trabalho em determinadas condições para construir e fortalecer a sua saúde mental, de modo que o trabalho se mostra não só como fator de risco de adoecimento, mas como recurso incontornável da saúde. O enigma, assim, deixa de ser a...

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