Aplicação Prudencial e Experiencial-Conjetural do Direito e as ?Regras de Experiência' do Artigo 335 do Código de Processo Civil

AutorEmerson Ike Coan
CargoMestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito (USP)
Páginas16-26

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1. Introdução

Este artigo pretende dar bases para compreensão das "regras de experiência comum" a que faz menção o artigo 335 do Código de Processo Civil, a fim de verificar o seu uso como critério de aplicação do direito, a partir de um modelo hermenêutico prudencial e experiencial-conjetural, na busca de soluções adequadas aos casos concretos em suas circunstâncias específicas.

2. Experiência e experiência jurídica

Em estudos para a fundação de uma teoria geral da experiência, Miguel Reale expõe que o termo experiência (do latim experientia, -ae, no sentido de "prova, ensaio, tentativa") compreende "tanto o lado subjetivo

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como o objetivo de uma realidade complementar, isto é, o ato de experienciar, ou a experiência a parte subjecti, bem como aquilo que se põe afinal como experenciado, ou a experiência a parte objecti"1. Diz ele preferir o verbo "experienciar" ao "experimentar", porquanto este último ao gerar o substantivo "experimentação", numa apreciação semântica conjunta cobre mais propriamente o campo da experiência natural ou do ‘mundo das coisas’, especialmente quando traduzem o processo mimético de produção ou reprodução, por exemplo, de um fenômeno físico, graças ao artifício de reproduzi-lo para a observação de suas causas e a captação das leis que o regem", e sobre aquele primeiro verbo, "ao contrário, além de se referir mais propriamente ao ‘mundo do homem’ ou da consciência, guarda um sentido originário de vivência direta da realidade, de algo que é posto ou pelo menos pressuposto como sendo distinto, mas não separável, da pessoa que a observa e examina, qualquer que seja o fim visado, ético, estético ou científico"2.

Está aí assentado o pressuposto de que a experiência no campo da ética (e das ciências sociais em geral), correlacionada, pois, ao sentido amplo de cultura3 e mais detidamente ao uso preciso da linguagem e de seu condão discursivo-argumentativo, se processa em função de "causas motivacionais", por certo que o sujeito, de acordo com o seu objetivo, faz "escolhas" ou "opções" em relação ao objeto que deve ser conhecido, e disso resulta o afastamento de qualquer posicionamento, nessas searas, que se diga puramente ‘objetivo’, ‘neutro’ ou ‘imparcial’, uma vez que "não podem ser esta- tisticamente ou numericamente objetivas, porque dotadas tão somente de ‘objetividade de sentido’, somente captável mediante juízos de plausibilidade fundados na convergência temporal e na correlação lógica entre causas motivacionais"4.

Tal se coaduna com a moderna teoria da argumentação jurídica5, assim se pronunciando Alaôr Caffé Alves:

"Por isso, a Lógica Formal jamais poderá orientar a ação ética dos homens. Por consequência, ela não pode ser a lógica dominante nos assuntos humanos, devendo ser, a teoria da argumentação retórica, a única forma de justificar os valores e os atos morais dos homens. A argumentação retórica, ao contrário da Lógica Simbólica ou Matemática - caracterizada por ser universal e, por isso, impessoal, neutra e monológica - supõe sempre o embate (dialético) de opiniões ou o confronto das ideologias e consciências no interior de situações e circunstâncias históricas determinadas e particulares. A Teoria da Argumentação, portanto, é uma reflexão e uma formula-ção sistemática sobre a regularidade dos discursos concretos destinados à persuasão, pressupondo sempre a multiplicidade dos sujeitos envolvidos num processo essencialmente dialógico."6 E destaca: "Do mesmo modo que não existe uma objetividade pura, pois isso seria uma formalidade pura, não existe uma subjetividade pura, pois isso levaria à irracionalidade, ao arbítrio imprevisível. O problema todo é o controle dessa subjetividade pela objetividade. Esse é o ponto fundamental."7

O discurso jurídico, na sua totalidade, ao privilegiar os aspectos comportamentais da relação comunicativa, tem por centro diretor da análise o "princípio da interação", isto é, a pretensão de se ocupar do ato da fala como uma relação entre emissor e receptor mediada por signos linguísticos em que se constate, por parte do primeiro, a construção de um texto com intuito de suscitar reações no segundo, conhecedor, na qualidade de interlocutor/ cientista/técnico, das "regras do jogo retórico/linguístico", para que diante de uma "questão" (implícito o elemento dubium) possa dar-lhe uma solução adequada ("decidir") e assim recíproca e sucessivamente.

Esse "caráter dialógico", no particular aspecto da "decidibilidade", como função pragmaticamente ligada à "construção das condições do juridicamente possível", é explicado por Tércio Sampaio Ferraz Júnior:

"Tanto a teoria dogmática da aplicação do direito quanto a teoria da argumentação jurídica mostram um quadro em que a decisão aparece como um sistema de procedimentos regulados em que cada agente age de certo modo porque os demais agentes estão seguros de poder esperar dele um certo comportamento. Não se trata de regularidades lógico-formais, mas por assim dizer, ideológicas (...) não é só um discurso informativo sobre como a decisão deve ocorrer, mas um discurso persuasivo sobre como se faz para que a decisão seja acreditada pelos destinatários (...) se preocupa não propriamente com a verdade, mas com a verossimilhança." 8

Prende-se este estudo à concepção de que o direito é uma realidade histórico-cultural que se constitui e se desenvolve em função de exigências inelimináveis da vida humana, examinando-se as condições não apenas lógicas de seu estudo, mas também éticas e históricas, vendo-o como experiência.

Na ciência jurídica contemporânea, certo que a implicação dialética entre polos dentro do direito, assim considerado unitário a partir de constantes de sua realidade, e por isso a expressão experiência jurídica, é verificada sob a denominação de multipli-

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cidade, significa dizer o exame interno de suas partes especiais, ao formar o conjunto de disciplinas, sendo certo também que, no seu sentido da complementari-dade, porquanto suas diferentes partes não se situam uma ao lado da outra como coisas acabadas e estáticas, perfaz o caráter sistemático ou sistêmico da unidade do fenômeno jurídico, que, objeto cultural, obedece ao tipo finalístico ou teleológico, também nas suas relações externas, pois partilhada com outros ramos do saber humano, o que sempre aparece como relação com ciências afins, hoje revestida sob o manto metodológico da interdisciplinaridade, na busca de soluções adequadas às demandas cada vez mais diversificadas9.

3. Aplicação prudencial e experiencial do direito

Coloca Reale que

"A prudência, sucessivamente identificada com a sapiência e a sabedoria, veio aos poucos se enriquecendo de novos valores, até se tornar a mais importante das virtudes que compõem a ética, condição primor-dial que é de uma solução justa para solução dos conflitos humanos. (...) em última análise, é a sábia arte de encontrar, com justa proporção e cautela, a solução mais adequada à compreensão e ao julgamento dos atos humanos."10

Vem dos jurisconsultos romanos, numa primeira grande elaboração teórica, a noção efetiva de prudentia, como virtude ou centro gravitacional de fazer e aplicar o direito, a conduzir um saber considerado de natureza prática, pois sua racionalidade não era apenas contemplativa e esquematizadora do real (como nos filósofos gregos), mas dirigida à ação, à construção, enfim, à solução de conflitos concretos (jurisprudentia)11.

Para a propalada busca de soluções adequadas às demandas cada vez mais diversificadas na sociedade coeva, é interessante o estudo realizado por Antonio Carlos de Campos Pedroso, sob o título "Aplicação prudencial dos esquemas normativos", no qual afirma que "a interpretação não se resume apenas numa ativi-dade cognoscitiva racional, mas abrange, também, uma atividade volitiva e decisória, exigindo esta a valoração de possíveis soluções, aptas a traduzir o justo concreto. Por outras palavras: a inter-pretação é um ato de construção prudencial. A prudência permite a solução do impasse porque, de um lado, é vinculada e dependente da teleologia imanente ao sistema, e, por outro, adaptável ao caso concreto, revestido de contingência. Só ela possibilita a aplicação equitativa do Direito. (...) O juiz é órgão criador do Direito porque, em última análise, é ele que realiza a equidade. Não a equidade como corretivo da lei. Mas a equidade que está presente em toda e qualquer problemática hermenêutica. Solução justa é a solução adequada do caso, conveniente às suas condições e apropriada às circunstâncias.

Solução justa é, nesta ordem de considerações, a solução iluminada pela prudência. Consequentemente, a prudência tem dimensão criadora. É dela que decorre o Direito justo e equitativo"12.

Intento hermenêutico apoiado na prudência para a solução de um caso sub judice (sob julgamento) deve prevalecer na ativi-dade do julgador como, nas palavras de J. M. Othon Sidou, "um labor interpretativo e construtivo, dado que a interpretação, por si, é um esforço técnico antecedente a uma atividade concreta: imediata, a jurisprudência; mediata, a doutrina. (...) O intérprete do direito não é, pois, o mero investigador do preceito, mas, sobretudo, é construtor do direito que nele se contém e que ali está disposto para atender ao fim social a que se destina. (...) Destas considerações infere-se que a eficácia do direito positivo depende, de um lado, do técnico que formula as leis, e, de outro, do intérprete que intui a lei. Um dispõe, e cria, em abstrato, sobre o querer social estático; o outro impõe, e cria, em concreto, o querer social dinâmico; e ambos concriam"13.

Veja-se, portanto, que:

"A natureza ‘compreensivanormativa’ da Jurisprudência decorre da necessidade que o...

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