Protocolo de avaliação do assédio moral em avaliações periciais ou diagnósticas: da caracterização ao parecer

AutorDebora Miriam Raab Glina
Páginas103-135

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Introdução

O termo assédio moral no trabalho é uma expressão unificadora que inclui várias formas de mau tratamento e comportamentos hostis no local de trabalho. Existem muitas definições de assédio moral no trabalho, cada uma enfatizando diferentes aspectos. Neste estudo adotamos a definição de Leymann (1996: p. 26-27), que descreve o assédio moral como um processo destrutivo que consiste em uma sucessão de afirmações hostis e ações que, se tomadas isoladamente, parecem inofensivas, mas cuja constante repetição tem efeitos perniciosos. Diversos termos são usados para expressar o assédio moral no trabalho, tais como: bullying, mobbing, bosing, victimization, harassment, acoso moral, etc. Embora haja algumas diferenças entre eles, para efeitos deste capítulo, consideraremos todos como sinônimos.

O assédio moral no trabalho acontece entre pessoas (assédio moral interpessoal). O perpetrador pode ser um indivíduo ou grupo, hierarquicamente superior ou inferior, ou mesmo um colega, fornecedor ou cliente. Há também o assédio moral organizacional, que se caracteriza por situações nas quais os procedimentos e práticas organizacionais são percebidos como opressivos, humilhando e degradando os empregados; ocorrendo de modo tão frequente e persistente que muitos empregados se sentem vitimizados por eles (Einarsen,
S., Hoel, H., Zapf, D., & Cooper, C. L., 2003).

As principais características utilizadas para definir os casos de assédio moral no trabalho, de acordo com revisão da literatura de Glina e Soboll (2012) são: compor-se de comportamentos indesejados e negativos, que ocorrem de forma recorrente e persistente, na forma de um processo que evolui com o tempo, com fases de crescente gravidade, com potencial de trazer efeitos nocivos para a saúde, diferença de poder entre o assediado e o assediador e intencionalidade (e.g.: exclusão do ambiente de trabalho). Entretanto, segundo as autoras, não há consenso entre os autores consultados em relação a qual frequência e duração considerar e de quantas fases se compõe o processo de assédio moral no trabalho.

O assédio moral no trabalho é um fenômeno que vem ganhando visibilidade e relevância por todo o mundo, exigindo ações dos profissionais de saúde e segurança no trabalho. Para tal, torna-se oportuno e necessário desenvolver instrumentos e rotinas para compreensão e mensuração dos processos de assédio moral.

Um protocolo pode ser definido como uma padronização de procedimentos. A ciência necessita de critérios objetivos e definidos e a Justiça precisa de certezas científicas (Ege, 2004). Assim, um protocolo é necessário em processos judiciais e/ou para a interface entre serviços de saúde ocupacional e a Previdência Social.

A perícia médica em casos de saúde do trabalhador é regida por diversas legislações, incluindo as do Conselho Federal de Medicina, Conselho Regional de Medicina e Código do Processo Civil. Existem várias descrições e modelos de laudo pericial. A perícia psicológica, por sua vez, é regida pela Resolução Conselho Federal de Psicologia (CFP) n. 008/2010 e a elaboração de documentos escritos é regida pela Resolução CFP n. 007/2003. Não existem resoluções específicas do CFP para os processos envolvendo casos de saúde do trabalhador.

Ege (2004) afirma que o assédio moral afeta muito mais do que o nível biológico. Seus efeitos podem alcançar profundamente os aspectos profissionais, econômicos, sociais, pessoais, familiares, etc. Toda a esfera existencial da pessoa pode ser prejudicada pelo assédio moral no trabalho. Assim, de acordo com o autor, os

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psicólogos do trabalho podem ser chamados pelos advogados e juízes como peritos em assédio moral no trabalho. Neste papel, eles têm basicamente duas tarefas:
1) certificar-se de que se trata de um caso de assédio moral no trabalho, ou seja, avaliar a praticabilidade de uma ação por danos devido ao assédio moral no trabalho; 2) quantificar o dano sofrido pela pessoa em consequência do assédio moral.

No Brasil, os casos de assédio moral no trabalho são julgados pela Justiça do Trabalho. Apenas médicos ou engenheiros de segurança no trabalho podem ser considerados peritos. Entretanto, podem e têm ocorrido parcerias, em que o médico do trabalho ou engenheiro de segurança no trabalho, chamam o psicólogo especializado em saúde do trabalhador a opinar.

O Serviço de Saúde Ocupacional (SSO) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) é um serviço de atenção terciária em saúde do trabalhador. Os pacientes são encaminhados ao serviço para diagnóstico e tratamento de doenças ocupacionais por sindicatos e serviços públicos de saúde, entre outros. Com o aumento da demanda de pacientes com suspeita de terem sido vítimas de assédio moral no trabalho, em 2006 foi estruturada uma pesquisa-ação, inserida na rotina do serviço, que durou até 2014. A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da FMUSP e apresentada aos profissionais do SSO.

Os pacientes passavam pelo seguinte fluxo de atendimento: triagem, médico do trabalho, psicóloga (pesquisadora sobre assédio moral no trabalho), psiquiatra, retorno ao médico do trabalho (após relatório/ laudo da psicologia e da psiquiatria) para emissão do relatório médico da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) – quando o mesmo considerava haver relação causal com o trabalho – e outros encaminhamentos necessários. O objetivo deste artigo é apresentar o protocolo desenvolvido para avaliar o assédio moral no trabalho utilizado no SSO, detalhando a sua construção, seus aspectos positivos e negativos, visando contribuir com os psicólogos que precisem avaliar situações de assédio moral no trabalho.

Método

A construção do protocolo apresentado neste artigo partiu de uma pesquisa bibliográfica cujo escopo foi limitado aos aspectos definidores do assédio moral no trabalho e aos instrumentos e os protocolos desenvolvidos para avaliar o assédio moral no trabalho. Foram consultadas as seguintes bases de dados: MEDLINE, PSYCHINFO, SCIELO e LILACS (de 1980 em diante).

Como os termos de busca e os idiomas das bases de dados diferiam, os termos utilizados foram personalizados para cada base de dados, assim como as estratégias de busca. Os idiomas foram limitados ao português, espanhol, inglês e francês.

Os anais de conferências e congressos sobre violência e assédio moral foram também pesquisados, assim como, capítulos de livros, dissertações e teses disponíveis na internet. Os sites da Organização Mun-dial da Saúde, Organização Internacional do Trabalho, Agência Europeia de Segurança e Saúde no Trabalho, e o site dos pesquisadores Leymann e Einarsen, foram visitados em busca de relatórios científicos e artigos. Ocorreu também busca na internet através do Google, variando as palavras-chave e o idioma.

Dado que a estratégia de busca poderia capturar estudos não relevantes, foram planejados passos subsequentes no processo de revisão para identificar e omitir estes estudos. A primeira seleção se deu através da leitura dos títulos e resumos. Os artigos completos só foram obtidos para os estudos dentro do escopo da pesquisa e que apresentassem boa qualidade científica. Foram priorizados os artigos de periódicos que passaram por análise de revisores (peer reviewed) e aqueles provenientes de fontes reconhecidamente confiáveis.

O protocolo descrito por Glina e Rocha (2009) e Glina (2010) foi a base para o desenvolvimento do presente protocolo de avaliação do assédio moral no trabalho. Os instrumentos de coleta de dados e de relatório/laudo anteriormente utilizados foram aperfeiçoados. O instrumento de coleta passou a integrar os dados qualitativos/processuais e os quantitativos. Ocorreu um aperfeiçoamento da avaliação psicológica e da pesquisa das funções mentais, fundamentado em Paim (1993) e Dalgalarrondo (2008), através da inclusão de testes práticos. O escopo da análise sobre o trabalho foi ampliado. Ocorreu a inclusão de questões detalhando o assédio moral no trabalho, com base na análise qualitativa de dezesseis casos iniciais. Foi realizado um estudo piloto com um paciente de fora do serviço, procedendo á correção das inconsistências. Ocorreu ainda a modificação do relatório/laudo, incorporando as orientações sobre a elaboração de relatório psicológico, publicada pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, no volume sobre legislação, resoluções e recomendações para a prática profissional, em 27/08/2011.

Resultados

Instrumento desenvolvido para coleta de dados

O novo instrumento para coleta de dados divide-se em quatro partes (ver Anexo A para detalhamento do

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instrumento). Sua aplicação se dá em 4 entrevistas com o paciente. Não há uma preocupação no instrumento de coleta em quantificar os itens para chegar em escores acima dos quais estaria definida a existência de assédio moral e abaixo dos quais a não existência de assédio moral, visto que os pacientes que chegam à psicóloga/ pesquisadora passam por três triagens anteriores que conseguem identificar acertadamente a quase totalidade dos casos de assédio moral interpessoal e/ou assédio moral organizacional. Além disso, não vemos sentido em quantificar o grau de assédio, dada a natureza extremamente singular da vivência de cada assediado.

A primeira parte do instrumento de coleta de dados aborda os dados sócio-demográficos do paciente.

Na segunda parte são abordados aspectos da saúde em geral: a queixa livre, a exploração sistemática dos sinais e sintomas psiquiátricos e psicológicos nas suas alterações quantitativas e qualitativas, incluindo testes práticos para avaliação das diversas áreas; a exploração de distúrbios psicossomáticos; hábitos e diagnósticos do CID 10.

A terceira parte aborda o trabalho; as condições de vida; a percepção do trabalhador sobre a relação entre o trabalho e as repercussões na saúde; e a relação entre as...

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