O protesto de título de crédito em que concordatario figura como devedor direto

AutorVinícius José Marques Gontijo
Páginas64-76

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1. Introdução

Recentemente, temos observado empiricamente o crescimento de apontamentos de títulos de crédito1 levados a efeito em face de sociedades concordatárias, por títulos sujeitos às suas propostas e lermos.

Isso decorre, no mais das ves, da leitura gramatical do texto do art. 24 da Lei 9.492/1997, chamada de Lei de Protestos,2 pois, como se sabe, a Lei Uniforme de Genebra não regulamentou o procedimento de protesto.3

Com efeito, o mencionado dispositivo legal é expresso em prescrever que o deferimento do processamento da concordata não impede o protesto. Contudo, parece-nos que o arligo não está a merecer interpretação gramatical, mas, sim, Iógico-sis-temática, sob pena de vulneração dos institutos da concordata e do protesto. Isso é o que pretendemos demonstrar neste nosso articulado.

2. Protesto cambial

Com o passar dos anos, o instituto do protesto cambial4 percebeu profundo des-

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vio de seu conteúdo jurídico, o que terminou por atribuir-lhe um conceito legal totalmente divorciado daquele doutrinário e jurisprudencial mente aceito. Esse conceito legal se compreende pela disposição dos oficiais de cartório de protestos em transformarem o meio de prova de apresentação em modalidade de coação para cobrança.

A definição que o art. 1° da Lei 9.492/ 1997 descreve é a seguinte: "Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o dcscumpi imenío de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida".

No entanto, a doutrina verdadeiramente esfrangalha a definição legal. Nesse sentido, uma das críticas mais veementes é a de João Baptista Villela que enxerga um agravamento da deformação do instituto pela "prática do protesto". Nesse diapasão, colha-se o magistério do mestre mineiro:

"A definição não poderia ser mais infeliz.

"Em primeiro lugar atribui ao sacado a obrigação de aceitar. O despropósito raia pelo absurdo. A ser assim, como quer a definição da Lei, está criado o poder de qualquer um produzir, por ato unilateral, tantas obrigações quantas queira, no valor que lhe dite seu arbítrio ou capricho. E a ordem jurídica deixaria de ser ordem e de sei jurídica para se trasmudar em reino de anomia."

E ele arremata: "Com sua linguagem imprópria e quase truculenta, o art. 1° da Lei só faz agravar uma iníqua deformação: a que fez do protesto cambial no Brasil cada vez menos um expediente de proteção do crédito e cada vez mais um instrumento de intimidação. Ou de chantagem".5

Em nossa opinião, o protesto não tem como, juridicamente, ser assimilado na forma estabelecida na lei, pois ele não tem como comprovar inadimplência e descum-primento de obrigação6 na medida em que o título apontado pode ser nulo, falso, inexistente7 ou, por qualquer razão, indevido.

O conceito, a despeito de ser legal, não é adequado: "Esse conceito de protesto, embora legal, não é correio. Há protestos que nele não se podem enquadrar, como o de falta de aceite da letra de câmbio. Como visto, o sacado desse título (ao contrário do que se verifica em relação à duplicata) não está obrigado a aceitar a ordem de pagamento que lhe é dirigida. Ao recusar o aceite, ele não descumpre obrigação nenhuma, e, ainda assim, caberá o protesto por

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falta de aceite, corno condição indispensável ao vencimento antecipado da letra".8

Com efeito, o protesto é mero meio de prova da apresentação, que pode ser para pagamcnlo, aceite, datar título sacado a certo termo de vista (art. 25 da Lei Uniforme de Genebra — LUG),9 aportar visto em nota promissória sacada a certo termo de vista (art. 78 da LUG) etc.

Nesse sentido, é a melhor doutrina:10 "O protesto é, antes de tudo, prova. Dentro das finalidades legais contidas na legislação que rege os títulos de crédito, ele épro-va insubstituível da apresentação do título ao devedor. O resto é consequência".11

De fato, o protesto tem de ser considerado como mero meio de prova da apresentação, por causa da natureza das obrigações. Como se sabe, as obrigações podem ser: quéráble ou portable, variando conforme o lugar da adimplência da obrigação; ou seja: de seu pagamento. De Plácido e Silva conceitua:

"Quéráble. Expressão francesa, da linguagem técnica forense, em que é empregada na acepção de requerivel.

"Quéráble, assim, exprime, propriamente, o que se pode requerer, o que é lícito pedir em juízo.

"Quéráble. Na terminologia jurídica brasileira, vem sendo aplicado, ao contrário deporiable (conduzível), para designar a dívida ou a prestação obrigacional, que deve ser cumprida na residência ou domicílio do devedor, quando a exige por ser oportuno, o credor.

"Nesta razão, quéráble, se instituída contratualmente ou resultante de disposição tácita, importa na cláusula ou condição de ser paga a dívida no próprio domicílio do devedor.

"E, assim, não cabe a ele a obrigação de cumprir o pagamento no domicílio do credor, o que é da natureza da dívida por-tahle.

"Conforme princípio já firmado na jurisprudência, mesmo que se tenha instituído a obrigação, pela quai o devedor deva cumprir a prestação no domicílio do credor, se usualmente vai este receber as que se têm vencido na residência ou domicílio do devedor, deporiable, que era, a prestação fica subordinada à condição de quéráble.

"Desse modo, não se constitui o devedor em mora por não ter levado a prestação ao credor, no respectivo domicílio, embora vencido e exigível."12

"Portable. Vocábulo francês, que se traduz que se traslada, é geralmente empregado na terminologia jurídica para indicar as obrigações que devem ser cumpridas pelo devedor no domicílio do credor.

"Portable, pois, indica a condição de ser paga a dívida no domicílio do credor,

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levada a respectiva importância pelo devedor ou por ouirem, a seu mando.

"Opõe-se ao sentido de quérabte, indicativo daquela que deve ser procurada peio credor."13

Em suma, na obrigaçãoquémbíecompete ao credor apresentar ao devedor, em seu domicilio, o tftulo ou documento de dívida para que ele possa adimplir, em sendo devida, a obrigação. Já na obrigação portable, compete ao devedor procurar o credor em seu domicilio e oferecer-lhe o pagamento, adimplindo a obrigação.

O art. 950 do Código Civil/l 916-1917, assim como o ari. 327 do novo Código Civil/2002-2003, não deixa margens para dúvidas quando estabelece que, salvo estipulação em contrário, o pagamento deve ser feito no domicílio do devedor. Com isso, tem-se uma presunção legal de que as obrigações, no Brasil, são quesfveis."14 "Presume a lei, no silêncio das partes, que escolheram o domicílio do devedor"15

Destarte, vencida uma obrigação, presumivelmente, o devedor não estará, ipso facto, cm mora,16 mas, sim, o credor,

É a chamada mora creditoris, competindo-lhe apresentar ao devedor o título ou documento de dívida para que possa ser pago. Com essa apresentação, o credor extrai os efeitos jurídicos comportados pela chamada mora debitoris, caso, efetivamente, a obrigação seja devida, desonerando-se de sua obrigação de apresentação.

Ora, considerando O fato de que os títulos de crédito comporiam, em regra, uma obrigação endossável17 e, por isso mesmo, nascem para circular, eles são o que se pode considerar como sendo exemplo mor de obrigações quesíveis, na medida em que, caso as partes não elejam a praça de pagamento, ela será presumida como sendo o domicílio do devedor direto (aris. 2B e 76, LUG). Tullió Ascarelli. examinando a legislação cambial e civil brasileira, anota que "a dívida cartular é, portanto, pagável no domicilio do devedor (deite quêrabie)",18 sendo, também, esse o entendimento de João Eunápio Borges19 e Wille Duarte Costa.20

Não poderia mesmo ser diferente, pois dado devedor de um título o saca em benefício de uma pessoa a qual poderá, simplesmente, endossá-lo a ouirem e, assim, sucessivamente, sendo praticamente inviável ao emitente, após certo prazo, saber a quem poderia oferecer o pagamento. Por isso mesmo, as leis que tratam dos títulos de crédito, de uma maneira geral, estabelecem que, na omissão da indicação da praça de pagamento, o título deve ser pago no lugar indicado como sendo, obrigação quesível

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que é, o domicílio do devedor.21 Caso o título não seja pago no domicílio do deve-dur, ainda assim ele lhe deve ser apresentado para que seja efetuado o pagamento.

Essa apresentação poderá ser extrajudicial ou mesmo judicia!, posto que há modalidade de protesto judicial (cf. arts. 867 et seq., CPC). Judicialmente ainda existe a possibilidade da própria execução, em que o título é apresentado especificamente para o pagamento e diretamente na ação, sendo o protesto, neste caso, facultativo em face dos devedores direios.22

No caso específico deste artigo, intc-ressa-nos a apresentação extrajudicial dos títulos, que se comprova pelo protesto. Evidentemente, como o título de crédito externa uma obrigação quérable, compete ao credor apresentar o lítuio ao devedor para que ele possa honrar a obrigação devida, mas essa apresentação necessita ser prontamente demonstrada e, para isso, destina-se o protesto: comprovar a apresentação do título, reitere-se.

"É muito importante para o direito cambiãrio que o cumprimento de certas obrigações seja formalizado de modo inequívoco. Corno os atos cambiários são realizados entre o devedor c credor torna-sc difícil, senão impossível, assegurar uma prova de ato que ocorreu reservadamente e sem oslentação. Como provar, na verdade, valendo-nos dos meios probatórios comuns e privados, que o portador, por exemplo, apresentou cm determinada data fatal a letra para aceite, ou para pagamento, se o de-vedor negar a ocorrência? A prova somente poderia ser colhida em Juízo contencioso, mediante prévia propositura de medida judicial,

"Mas o direito cambiário, como já estudamos, requer celeridade e efeitos instantâneos, nos problemas relativos à...

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