Protesto de duplicata simulada e procedimentos judiciais do sacado

AutorCelso Barbi Filho
Páginas172-195

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1. Introdução

Tema de grande interesse prático e que vem sendo abordado com certa vacilação nos tribunais é o protesto cambiário das chamadas duplicatas simuladas ou "frias". Tais duplicatas, como se sabe, são aquelas sacadas pelo empresário sem que tenha realizado a venda de mercadorias ou a prestação de serviços a que deveriam corresponder os títulos.

Dito procedimento é comumente ado-tado para o chamado "desconto" desses títulos. As duplicatas são irregularmente criadas por empresários em dificuldades financeiras, a fim de obterem recursos com sua transferência, por endosso traslativo, a bancos ou empresas de factoring, que adiantam ao sacador-endossante parte da importância das cártulas, na expectativa de receber seu valor integral do sacado por ocasião do vencimento.

Se o sacado, por nada ter adquirido do sacador, recusa o aceite ou o pagamento da duplicata, o protesto do título será necessário ao portador que, tendo recebido-o por endosso, deseja voltar-se regres-si vãmente contra aquele que, sacando a duplicata, nela obrigou-se anteriormente.

Ocorre que, quem será intimado da realização do protesto e terá seu nome registrado nos assentamentos do cartório e nas certidões respectivas não será o sacador, mas sim o chamado devedor principal que, nos títulos sujeitos a aceite como a letra de câmbio e a duplicata, é o sacado, a despeito de não ter ainda sequer se obrigado cambiariamente.

Assim, quando esse sacado é vítima da emissão contra si de duplicata não correspondente a qualquer relação negociai com o sacador, surge um conflito de direitos tuteláveis entre o sacado vitimado e o portador de boa-fé, relativamente ao protesto do título.

Enquanto o portador necessita do protesto para se voltar contra o sacador-endossante, que lhe transferiu o título não honrado, o sacado vê-se prejudicado, pelo menos do ponto de vista comercial, com o registro de seu nome no protesto de duplicata que não aceitou e de que não é devedor.

Nesses casos, o aludido confronto de interesses jurídicos entre o sacado vitimado e o endossatário de boa-fé, quanto ao protesto da duplicata simulada, tem sido levado aos tribunais, que ainda não definiram solução técnica e justa, que tutele adequadamente os interesses de ambos.

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E o tema ganha relevo com a recente edição da Lei n. 9.492/97, que passou a disciplinar vários aspectos do protesto cam-biário no Brasil.

Em sequência dessa Lei vieram polémicas normatizações regionais como o Provimento n. 30/97, da Corregedoria da Justiça do Estado de São Paulo, que, amparado em norma da própria Lei de Duplicatas (n. 5.474/68, art. 20, § 39) proíbe aos cartórios daquele Estado lavrarem protestos de duplicatas sem aceite que não estiverem acompanhadas de prova da efetivação da compra e venda ou da prestação de serviços (nota fiscal-fatura e comprovante de entrega da mercadoria ou da prestação do serviço).

Daí porque a questão merece ser melhor analisada no plano doutrinário, justificando ensaios como o presente que, sem pretender definir o que seja acertado, propõe-se apenas a levantar e encaminhar ideias para uma futura solução da controvérsia.

2. O protesto cambiário

Protestar tem o sentido etimológico de afirmar solenemente ou declarar publicamente um fato. Há em direito pelo menos três tipos de protesto: o cambiário, o fali-mentar e o judicial.

Os dois primeiros realizam-se por uma serventia de registro público, que é o tabelionato de protestos, podendo, nos termos do art. l9 da Lei n. 9.492/97, efetivar-se quanto a títulos de crédito e "outros documentos de dívida",1 como, por exemplo, um contrato ou uma sentença judicial. Já o protesto judicial nada tem a ver com isso, sendo apenas manifestação formal de uma parte a outra, feita através do juiz, para se prevenir responsabilidades e ressalvar direitos concernentes a determinado fato jurídico (art. 867 do CPC).

Note-se que, tanto no protesto extrajudicial quanto no judicial, seu autor é quem o requer e não o tabelião ou o juiz, simples agentes do ato público de tutela do interesse privado.2

O protesto que aqui interessa é o cambiário. Pode ser definido como o registro formal, de natureza administrativa, praticado por oficial de registro público, o titular do cartório de protestos, sem intervenção judicial, e destinado a comprovar a falta da prática de ato a que estava obrigado o devedor principal de um título ou outro documento de crédito. Esse ato poderá ser o pagamento, o aceite ou a devolução do título, sendo os dois últimos casos aplicáveis às letras de câmbio e duplicatas. O protesto, portanto, na clássica definição de José Maria Whitaker "é o ato oficial pelo qual se prova a não realização da promessa contida no título".3

O protesto se faz necessário porque "as obrigações oriundas dos títulos cambiais, entre os quais se encontra a duplicata, envolvem a responsabilidade de várias pessoas, motivo por que a comprovação da falta de aceite ou de pagamento não deve ficar adstrita a uma declaração particular do sacado para o tomador".4 Assim, o protesto, como registro público, tem finalidade probatória e publicitária, destinando-se a atestar que todos os coobrigados no título tenham ciência, pelo menos presumida, da falta de aceite ou pagamento da cártula, assumindo as consequências jurídicas desses fatos sobre as obrigações cambiarias.

É incomum a concorrência de tantos diplomas legais disciplinando um mesmo instituto, como ocorre com o protesto cam-

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biário no Brasil. Cronologicamente, tem-se o Decreto n. 2.044/08, em seu art. 28, regulando o prazo e o local do protesto da letra de câmbio e da nota promissória. Na Lei Uniforme de Genebra, promulgada pelo Decreto n. 57.663/66, encontram-se os arts. 44, 45 e 46, prevendo a finalidade do protesto daqueles títulos, os prazos de aviso dos coobrigados de regresso e a possibilidade de dispensa do protesto. A Lei n. 5.474/68, em seus arts. 13, 14 e 20, disciplina o prazo, local e peculiaridades do protesto das duplicatas mercantis e de prestação de serviços. No Código de Processo Civil de 1973, estão os arts. 883 a 885, regulando a forma de intimação do devedor no protesto de títulos, bem como a possibilidade de apreensão judicial de título enviado para aceite ou pagamento e não devolvido, além da prisão civil de quem o reteve indevidamente. Mencione-se ainda a Lei n. 7.357/85, que cuida em seu art. 48 do prazo, local e de outras particularidades do protesto dos cheques.

Surge agora a Lei n. 9.492/97 que, sem revogar expressamente os citados diplomas legais, passa a disciplinar o protesto de títulos e "outros documentos de dívida", definindo-o, em seu art. l9, como o ato formal e solene pelo qual se prova a inadim-plência e o descumprimento de obrigação originada desses títulos e documentos de dívida.

Não se pode concluir que nenhum dos mencionados textos legais esteja integralmente revogado pela nova Lei. Ela cuidou basicamente dos procedimentos internos dos cartórios na lavratura dos protestos, respeitando as normas particulares que existiam sobre o protesto de cada espécie título de crédito. Todavia, destacam-se dois relevantes pontos, que eram disciplinados con-correntemente pelos diplomas anteriormente referidos, e passaram a ter regulamentação única na nova lei, quais sejam, o prazo em que o oficial deve tirar o protesto (art. 12) e os elementos do registro de protesto que constam do respectivo instrumento (art. 22).

Vigentes ainda as normas especiais sobre local e prazo de apresentação a protesto de cada espécie de título, tem-se sobre a duplicata que, de acordo com o art. 13, § 49, da Lei n. 5.474/68, deve ser levada a protesto nos trinta (30) dias que se seguirem ao vencimento, o que significa dever o título ser entregue ao tabelião de protestos nesse prazo. Recebido o título, o oficial intimará o obrigado principal, sacado, para aceitar, pagar ou justificar porque não o fez, lavrando o protesto em três dias úteis, contados da protocolização do título no cartório.

Até o advento da Lei n. 9.492/97, face ao disposto no art. 25, da Lei de Duplicatas, considerava-se que esse prazo de três dias úteis para a lavratura do protesto era o previsto no art. 28, do Decreto n. 2.044/08, cujo texto, não absolutamente claro, admitia a interpretação de que os dias fossem contados da data em que o devedor recebeu a intimação do protesto, e não daquela em que título deu entrada no cartório. Com efeito, havia nos tribunais o entendimento de que "o prazo de três dias para ser tirado o protesto conta-se a partir da efetiva intimação do sacado. Não se pode contá-lo a partir da apresentação do título em cartório, porque a intimação do devedor pode não ocorrer e ela é da essência do ato".5

Essa exegese da Lei Cambial, mais benéfica aos devedores, restou prejudicada pela nova Lei n. 9.492/97, cujo art. 12 foi claro ao estabelecer que "o protesto será registrado dentro de três dias úteis contados da protocolização do título ou documento de dívida". Dispôs mais a nova Lei que, na contagem desse prazo, exclui-se o dia da protocolização e inclui-se o do vencimento, entendendo-se por dias úteis aqueles em que houver expediente bancário com horário normal. Excepcionalmente, quando a intimação for efetivada no último dia do prazo ou além dele, o protesto será tirado no primeiro dia útil seguinte (art. 13).

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Conforme dispõe o art. 13, § 49, da Lei n. 5.474/68, o protesto da...

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