Protegendo os cidadãos-consumidores em tempos de big data: uma perspectiva desde o direito da União Europeia

AutorManuel David Masseno
Páginas39-60

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1. A Big Data e a defesa dos consumidores: identificação e caraterização breves

Com crescente frequência, mesmo na comunicação social generalista, as referências à Big Data e suas implicações para a vida das pessoas têm-se multiplicado, nem sempre em termos rigorosos. Pelo que, é necessária uma aproximação aos textos oficiais da união europeia, de maneira a delimitar a respectiva noção e o nosso objeto. assim, sinteticamente, o termo

Megadados refere-se ao aumento exponencial da disponibilidade e da utilização automatizada de informações: refere-se a conjuntos de dados digitais gigantescos detidos por empresas, governos e outras organizações de grandes dimensões, que são depois extensivamente analisados (daí o nome “analítica”) com recurso a algoritmos informáticos.3e, de um modo mais detalhado:

O termo “grandes volumes de dados” refere-se a grandes quantidades de dados de diferentes tipos produzidos em grande velocidade a partir de um elevado número de diferentes tipos de fontes. Para lidar com os conjuntos de dados altamente variáveis e em tempo real gerados hoje em dia, são necessários novos métodos e ferramentas, como, por exemplo, processadores, software e algoritmos de grande potência. Que vão além das tradicionais ferramentas de “exploração de dados” (mining) concebidas para lidar principalmente com conjuntos de dados estáticos, de pequena escala e baixa variedade, muitas vezes manualmente.4em termos simples, a Big Data resulta da confluência de três avanços tecnológicos de origem diferente, mas que se reforçaram entre si. Designadamente, da computação em nuvem, a qual passou a possibilitar o armazenamento de volumes crescentes de dados, com disponibilidade permanente e uma fiabilidade assegurada pela redundância, tudo isto com custos cada vez menores; a que se juntaram as comunicações de banda muito larga, em fibra ótica ponto a ponto,

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com velocidades de acesso tais que deixou de ser necessário manter centros de dados próprios, igualmente com custos decrescentes; incorporando-se a ambas, a criação de algoritmos de análise assentes em inteligência artificial, mais do que em força bruta computacional, ainda que distribuída, veio acrescentar a viabilidade de gerir pacotes cada vez maiores de dados, em tempo real. Finalmente, a proliferação de sensores interligados, a que se tem dado o nome de internet das coisas, ou de tudo, veio multiplicar a informação disponível, a qual respeita sempre e em definitiva aos cidadãos-consumidores.

Desta maneira, a Big Data constitui a nova fronteira para a criação de valor, com um aumento radical da eficiência nos processos e na alocação de recursos, como o WeF – Fórum económico Mundial (Davos) de 2012 apontou5.

Isso porque as analíticas subjacentes à Big Data viabilizam a detecção de microtendências, indo além dos métodos analíticos assentes em amostragens de base estatística, incluindo a data mining, por terem como objeto todos os dados e não apenas amostragens, o que multiplica exponencialmente as correlações que passam a ser possíveis de inferir.

No que se refere às relações de consumo, estas ferramentas têm sido sobretudo utilizadas em matéria de marketing direto e de OBA – publicidade comportamental em-linha, embora sejam igualmente de referir as análises de rede e as informações de crédito.

Concretizando, nas operações com consumidores, além de facultar um muito melhor apoio à decisão nas empresas, com um enorme acréscimo de eficiência organizacional, a Big Data releva essencialmente na estruturação da oferta. Com efeito, tornou concretizável uma segmentação capilar, focalizada nas aspirações de cada cliente, e já não em conjuntos de pessoas arrumadas por tipos, o que deixara de ser compatível ou necessário atendendo à massificação dos comportamentos e dos gostos que caraterizou a sociedade industrial. assim, com custos muito reduzidos, ao deixar de ser necessário dispor de mão de obra especializada e disponível para cada cliente, o que apenas continua a verificar-se nos mercados de bens de

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luxo ou outros de elevado valor unitário, temos hoje a possibilidade de generalizar:

– uma personalização fundada nos padrões de comportamento do cliente nas suas relações com o fornecedor, ou na sua ausência;

– uma personalização baseada nas suas relações com terceiros nas redes sociais, indo além dos comportamentos individuais;

– uma personalização relativamente a bens ou serviços adicionais ou alternativos, que possam complementar as experiências de consumo;

– uma personalização decorrente da sua localização, mesmo em tempo real e em movimento, atendendo à circunstância de sermos quase todos utilizadores de smartphones;

– e, ainda, uma personalização da negociação, conduzida por agentes inteligentes, nomeadamente chatbots, à partida omniscientes e amorais, programados para obterem resultados através do diálogo com cada cliente.

2. As consequências normativas

As instâncias europeias estão cientes das implicações do uso, sobretudo se generalizado, da Big Data. até porque não existem alternativas a uma aposta muito séria e consistente das políticas públicas na “economia dos dados”, salvo se a europa renunciar à respectiva competitividade com os estados unidos e o oriente.

Desta maneira, é a própria Comissão europeia a acentuar: assistimos a uma nova revolução industrial induzida pelos dados digitais, a informática e a automatização. as atividades humanas, os processos industriais e a investigação conduzem, todos eles, à recolha e ao tratamento de dados numa escala sem precedentes, favorecendo o surgimento de novos produtos e serviços, assim como de novos processos empresariais e metodologias científicas [pelo que é essencial ter presente que] o direito fundamental à proteção dos dados pessoais aplica-se aos grandes volumes de dados no caso de se tratar de dados pessoais: o seu tratamento tem de respeitar todas as regras aplicáveis em matéria de proteção de dados [e que] o direito horizontal dos consumidores e do

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marketing também se aplica aos produtos baseados na tecnologia dos grandes volumes de dados. a Comissão garantirá que as PMe e os consumidores, os fornecedores e os utilizadores recebam todas as informações necessárias, não sejam enganados e possam confiar na lealdade dos contratos, nomeadamente no que respeita à utilização de dados provenientes dos próprios. estas medidas contribuirão para criar a confiança necessária para explorar o pleno potencial da economia de dados.6

2. 1 No que se refere ao direito dos consumidores, em sentido estrito

Neste domínio, as consequências da utilização da Big Data começam a fazer-se sentir, mesmo no núcleo mais duro de defesa do consumidor perante o poder das empresas na economia industrial, o das cláusulas contratuais gerais, ou contratos por adesão.

Com efeito, a aplicabilidade da disciplina constante da Diretiva 93/13/Cee, do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, assenta na ausência de “negociação individual”, com as seguintes delimitação e consequências7:

1. uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

2. Considera-se que uma cláusula não foi objeto de negociação individual sempre que a mesma tenha sido redigida previamente e, consequentemente, o consumidor não tenha podido influir no seu conteúdo, em especial no âmbito de um contrato de adesão. o facto de alguns elementos de uma cláusula ou uma cláusula isolada terem sido objeto de negociação individual não exclui a aplicação do presente artigo ao resto de um contrato se a apreciação global revelar que, apesar disso, se trata de um contrato de adesão.

Se o profissional sustar que uma cláusula normalizada foi objeto de negociação individual, caber-lhe-á o ónus da prova. (art. 3º)

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Ora, com a Big Data e os chatbots, isto é, programas informáticos dotados de inteligência artificial capazes de manter um diálogo com um interlocutor humano, os custos de transação reduziram-se até ao ponto em que se tornou viável negociar individualmente cada uma das cláusulas contratuais. Mais ainda, o consumidor passou a ter perante si um interlocutor com um conhecimento muito aprofundado das suas necessidades e aspirações, porventura maior que o próprio tem de si conscientemente, o que vem desequilibrar, ainda mais acentuadamente, as posições das partes nas relações de consumo.

Esta nova realidade vem reforçar a importância do regime das comunicações não solicitadas, já não só referidas ao sPaM, constante da Diretiva 2002/58/Ce, do Parlamento europeu e do Conselho, de 12 de julho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas, com as alterações introduzidas pela Diretiva 2009/136/Ce, de 25 de novembro, o qual passou a determinar8:

1. a utilização de sistemas de chamada e de comunicação automatizados sem intervenção humana (aparelhos de chamada automáticos), de aparelhos de fax ou de correio eletrónico para fins de comercialização direta apenas pode ser autorizada em relação a assinantes que tenham dado o seu consentimento prévio.

2. não obstante o n. 1, se uma pessoa singular ou coletiva obtiver dos seus clientes as respetivas coordenadas eletrónicas de contacto para correio eletrónico, no contexto da venda de um produto ou serviço, nos termos da Diretiva 95/46/Ce, essa pessoa singular ou coletiva pode usar essas coordenadas eletrónicas de contacto para fins de comercialização direta dos seus...

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