A proteção na cultura jurídica trabalhista: revisão conceitual

AutorSayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva e Luiz Eduardo Figueira
Páginas53-64

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1. Introdução

O objetivo do artigo é rever o debate presente na cultura jurídica clássica em torno da proteção ao trabalhador sob o enfoque do que se convencionou denominar "doutrina trabalhista". Para tanto, empreende uma revisão das concepções teórico-conceituais sobre a proteção ao trabalhador que influenciaram a literatura jurídica brasileira, em especial aquelas provenientes do debate latino-americano. Apresenta a noção de proteção como a razão de ser do Direito do Trabalho, presente na clássica obra do uruguaio Américo Plá Rodriguez e o clássico contraponto feito pelo professor mexicano Mário de La Cueva, que rechaça a noção de tutela do hipossuficiente. Segundo tal vertente crítica, o Direito do Trabalho deve ser visto como decorrente de um processo de conquista dos trabalhadores e seus princípios, como resultantes das aspirações e lutas pela dignidade no trabalho e concretização da justiça social.

Em segundo momento, examina as contestações à admissão do princípio da proteção no Direito do Trabalho brasileiro sob o signo das ideias de flexibilidade e encerra apresentando os eixos e temas trazidos por uma nova geração de juristas que buscam fundamentar a proteção no Direito do

Trabalho na contemporaneidade. O objetivo é fazer uma revisão das concepções em torno dos fundamentos e objetivos do princípio da proteção no Direito do Trabalho e um inventário dos eixos discursivos presentes na doutrina brasileira atual que versa sobre o tema. Nesse sentido, a opção pela metodologia qualitativa, privilegiando a técnica do levantamento e análise bibliográfica, mormente artigos científicos e manuais de direito do trabalho e obras-referência da literatura latino- -americana. O trabalho insere-se em pesquisa mais ampla sobre cultura jurídica dos juristas e magistrados trabalhistas brasileiros e hipossuficiência, e apresenta a fase atual da investigação. Não se insere dentre os objetivos do artigo o exame de controvérsias dogmáticas que decorrem da admissão do princípio da proteção como ordenador do sistema jurídico trabalhista, nem as polêmicas sobre a extensão das funções integrativas, interpretativas, diretivas ou limitadoras desse princípio de direito, mas sim o modo de ver dos juristas sobre as razões que o fundamentam e o erodem.

2. Cultura jurídica e doutrinadores

Embora na literatura jurídica nacional sejam poucos os estudos sobre os sentidos e as funções que o Direito do

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Trabalho exerce na sociedade, no âmbito da sociologia do trabalho brasileira, há extensa bibliografia envolvendo a construção da regulação do trabalho no Brasil. Desde a desconstrução da ideia de outorga dos direitos por Getúlio Vargas, inaugurada pelo sociólogo Evaristo de Moraes Filho, em 1952, com sua crítica ao mito da outorga (MORAES FILHO, 1978), passando pelas polêmicas sobre a artificialidade dos direitos e da CLT e do debate a respeito da natureza da regulação do trabalho no pós-1930 (ALMEIDA, 1978; VIANNA, 1999; OLIVEIRA, 2003; FRENCH, 2001) e, mais recentemente, sobre a flexibilização laboral (CARDOSO, 2003), há uma constante revisão da sociologia e da historiografia sobre o papel das classes trabalhadores, do empresariado e do Estado na construção da legislação trabalhista.

Tais debates enfrentam, sob um ponto de vista externo, a natureza, o papel e as funções desempenhadas pelo Direito do Trabalho na estruturação do capitalismo brasileiro e na construção dos sindicatos e do movimento de trabalhadores no Brasil do século XX. Poucos examinaram os impactos que a disciplina do mercado de trabalho por uma ordem legal estatal e a envergadura do projeto, que culminou com a elaboração da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, teriam no campo dos profissionais do Direito. Werneck Vianna é uma exceção à regra. Em sua obra seminal, observou que a CLT, por mais paradoxal que possa parecer, inspirara "uma corrente política liberal tipicamente brasileira", que não abdicaria da "alquimia de fazer conviver o reino do puro interesse com o solidarismo social, introduzindo no mercado elementos éticos e normativos pela força da lei" (VIANNA, 1999, p. 301):

A ideologia da CLT, como seu primado do direito sobre a economia, do público sobre o privado, exerceria uma notável influência entre juristas em geral e pensadores católicos, inclusive na sua ala liberal. Nela estavam a possibilidade de se fundar o homem liberal e o pluralismo político numa ordem inclusiva baseada na disciplina e na norma. (VIANNA, 1999, p. 318)

No confronto entre a ideologia liberal do pós-guerra, acolhida na Constituição de 1946, e a concepção organicista e autoritária que inspirara o projeto CLT na era Vargas, uma cultura jurídica específica emergiria das décadas de 1940 e 1950: a do liberalismo comunitarista (VIANNA, 1999, p. 317). A primeira escola de "iuslaboralistas", para Werneck Vianna, conservaria a aversão ao mercado de trabalho livre e afirmaria o papel do Direito na integração das distintas classes sociais (VIANNA, 1999, p. 319). O comunitarismo se tornaria, assim, a "ideologia específica do magistrado trabalhista" (1999, p. 343). Em certa medida, este "utopismo jurisdicizante" (VIANNA, 1999, p. 318) caracterizaria uma cultura jurídica trabalhista própria. Tal cultura, estruturada em torno das noções de ordem, paz social e tutela dos hipossuficientes, afirmaria que o protecionismo legal seria o fundamento do Direito do Trabalho1. Se a ideia de proteção se apresenta como um ethos a caracterizar as primeiras gerações de juristas trabalhistas brasileiros, uma revisão dos trabalhos dos doutrinadores sobre o princípio da proteção no direito do trabalho pode ajudar a compreender mais que discussões sobre regras, interpretações ou princípios. Contribui para o entendimento do sistema de valores e dos modos como a cultura jurídica se constrói e se reconstrói no campo do direito laboral.

2.1. A proteção como princípio clássico

O paradigma de proteção presente no Direito do Trabalho nas primeiras décadas do século XX, que caracteriza a proteção típica do pré-Estado Providência, foi denominado por Freitas Júnior "protecionismo clássico" (FREITAS JÚNIOR, 1999, p. 66-75). Por oposição ao protecionismo promocional típico da regulação adotada em regimes de Welfare State, o protecionismo clássico teria como alvo de proteção o empregado considerado hipossuficiente, e o Estado, o protagonista da ação protetora. Em relação às técnicas de proteção, enfatizam-se as normas cogentes, restringindo ou vedando transações. Quanto ao trabalhador, apresenta como tipo ideal da proteção o operário não qualificado e, por extensão, outras categorias. E, em relação à natureza das formas, o protecionismo clássico buscaria alcançar o vínculo empregatício, com pouca atenção aos mecanismos de ação sindical e de regulação coletiva autônoma (FREITAS JÚNIOR, 1999, p. 69-70). Os doutrinadores clássicos estudados neste artigo são representantes ou herdeiros dos protecionistas de primeira geração2, dentre os quais o uruguaio Américo Plá Rodriguez (2000), Arnaldo Süssekind (2004) e Luiz de Pinho Pedreira da Silva (1999).

2.1.1. A razão de ser do Direito do Trabalho

Na tradição da cultura trabalhista latino-americana, o fundamento do princípio de proteção "está ligado à própria razão de ser do Direito do Trabalho" (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 85).

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Oriundo da escola uruguaia de Direito do Trabalho, com forte inspiração entre os juristas latino-americanos, Américo Plá Rodriguez publicou obra de referência que, traduzida e reeditada em nosso país, teve forte penetração na cultura jurídica trabalhista brasileira (ERMIDA URIARTE, 2007, NASCIMENTO, 2005, p. 149). O princípio de proteção, para o autor, se "refere ao critério fundamental que orienta o Direito do Trabalho, pois este, ao inspirar-se num propósito de igual-dade, responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial a uma das partes: o trabalhador" (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 83).

O princípio de proteção se articula com a especifici-dade do surgimento do Direito do Trabalho como campo que adquire autonomia por oposição a um sistema fundado na igualdade. Se o reconhecimento da desigualdade justifica a construção de um novo ramo do direito, sendo uma opção legislativa o estabelecimento do sistema de proteção do trabalhador, "o intérprete desse direito deve colocar-se na mesma orientação do legislador, buscando cumprir o mesmo propósito" (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 86). A ruptura com a ficção da igualdade jurídica, a opção legislativa de favorecer os trabalhadores, a compensação da desigualdade econômica com a "recuperação", pelos trabalhadores, "no terreno do direito o que perdeu no terreno da economia", a grandiosidade das leis protetoras, a configuração especial do Direito do Trabalho, a tutela preferencial, a afirmação de que o desenvolvimento histórico do Direito do Trabalho provém do reconhecimento de uma necessidade de proteção, para operários e trabalhadores em geral, são os argumentos centrais trazidos por Plá Rodriguez (2000), pela voz de doutrinadores estrangeiros, como fundamento para o princípio.

Plá Rodriguez constrói sua justificação por oposição a concepções marxistas e liberais. Delimita expressamente seu viés, com a preocupação de rechaçar os autores marxistas3, recebendo as leituras que propõem ser o Direto do Trabalho meio defensivo de preservação do sistema para conservá-lo, mas reconhecem existir normas tuitivas oriundas de reivindicações e regras emancipadoras, como contraditórias. Observa-se, neste campo, que a fundamentação adotada por Plá o faz...

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