Proteção à Marca de Fato Contra Concorrência Desleal

AutorGeraldo Honório de Oliveira Neto
Páginas169-177

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A Lei 9. 279/96 prevê sanções penais e civis para a concorrência desleal por uso de marca de fato. Antes de analisar as hipóteses, apresenta-se uma noção acerca das diferenças fundamentais entre a relação de concorrênciaearelação de propriedade sobre a marca (seção

I) e as noções básicas sobre ato de concorrência desleal (seção II). Segue o tema da repressão à concorrência desleal por uso de marca de fato pela via penal (seção III) e civil (seção IV).

SEÇÃO I RELAÇÃO DE CONCORRÊNCIA E RELAÇÃO DE PROPRIEDADE

O regime jurídico da propriedade intelectual é manifestação dos princípios que buscam estabelecer a livre concorrência542, uma especialização do sistema de repressão à concorrência desleal, tendo nele a sua origem543. Por isso, é idêntica a finalidade da proteção específica conferida pelo sistema jurídico ao uso exclusivo de bens imateriais, por meio da propriedade intelectual, e a finalidade da proteção genérica ao uso destes bens proporcionada pelas normas de repressão da concorrência desleal. Busca-se um ambiente de liberdade no exercício da concorrência, possível mediante a limitação desta aos meios concorrenciais moralmente aceitos.

Gama CERQUEIRA destaca a afinidade fundamental de todos os institutos da proprie-dade intelectual, tenha ela como objeto as criações industriais, os signos distintivos ou a obra literária, científica ou artística. No seu dizer, ". . . todo o edifício da propriedade industrial, como aliás, da propriedade literária, científica e artística, repousa no princípio ético da repressão da concorrência desleal, que constitui o fundamento e a razão de suas leis. (. . . ) Os princípios em que se funda a teoria da repressão da concorrência desleal dominam todos os institutos da propriedade industrial, como reverso moral da lei positiva, revelando-se, assim, sob este aspecto, a unidade desse ramo do Direito". 544Sobre a interpretação e a aplicação das normas relativas à propriedade industrial, o autor bem diz que ". . . a exata inteligência e aplicação das leis de propriedade industrial está

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subordinada, de um lado, aos princípios da boa-fé e da lealdade nas relações comerciais e industriais, e, de outro, ao princípio da liberdade de comércio e de indústria"545.

A repressão à concorrência desleal e a propriedade industrial decorrem do princípio constitucional da liberdade de concorrência. O artigo 170 da Constituição Federal de 1988 e oartigo2º da Lei 9. 279/96 são a base legal desta interpretação. O dispositivo constitucional estabelece que a ordem econômica brasileira deve observar o princípio da livre concorrência. A norma maior, em seu artigo 5º, inciso XXIX, ainda determina que a lei assegurará proteção à propriedade das marcas, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País. O dispositivo do Código da Propriedade Industrial estabelece que ". . . A proteção aos direitos relativos à propriedade industrial, considerado o seu interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País, efetua-se mediante: (. . . ) III - concessão de registro de marca; (. . . ) V - repressão à concorrência desleal". As duas formas de proteção, específica e genérica, não se excluem, mas se completam, embora apenas as normas que regulam o direito de propriedade sobre os bens industriais ofereçam direta proteção a estes bens, possibilitando maior eficácia ao regime de proteção da concorrência.

Sendo certa a coincidência funcional das relações de propriedade e de concorrência, destaca-se que elas diferem-se em estrutura. ASCARELLI admite a coincidência funcional das relações e as distingue no aspecto estrutural. No seu dizer, ". . . É preciso, a este respeito [a respeito do enquadramento do direito absoluto sobre bens imateriais na disciplina da concorrência], distinguir o aspecto funcional e o estrutural: funcionalmente, os institutos considerados encaixam-se dentro do campo da disciplina da concorrência e, como os demais institutos concernentes à disciplina da concorrência, se coordenam com a tutela da probabili-dade de ganhos; estruturalmente, os reconhecidos direitos de utilização exclusiva podem enquadrar-se no esquema do direito de propriedade, precisamente entendido como um direito absoluto patrimonial de gozo e disposição cujo ponto de referência o constitui um bem externo ao sujeito"546.

As relações de propriedade e de concorrência têm conteúdos distintos e se estabelecem entre partes não necessariamente coincidentes. A primeira confere direito absoluto sobre a marca, converso ao dever geral negativo de abstenção a respeito de um objeto bem definido. A proteção genérica contra a concorrência desleal, por sua vez, incide no âmbito restrito das relações de concorrência. Não coincidem, portanto, em tese, as partes na relação de concorrência e de propriedade. Concretamente, o uso de marca registrada alheia sem autorização do proprietário concorrente, de modo a induzir confusão547, viola direito de propriedade548 e, concomitantemente, o dever ético de lealdade na concorrência, constitui emprego de meio ilícito para desviar clientela alheia549. Em outros termos, uma única conduta pode ser elemento do suporte fático tanto de violação do direito de propriedade como da hipótese de concor-

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rência desleal, de modo a implicar sanções nos dois regimes. Mas, embora possam coincidir os sujeitos das relações, não se confundem as relações jurídicas, pois dizem respeito a bens jurídicos diversos: o bem imaterial, objetivamente considerado, de um lado, e, de outro, a liberdade de concorrência, possível pela observância do dever ético de agir com lealdade na disputa pela clientela550.

Pode-se dizer que a propriedade industrial proporciona uma proteção mais ampla e eficaz ao uso de marcas que a proteção genérica contra a concorrência desleal. Na parte pas-siva da relação jurídica de propriedade figuram todos os não-proprietários do bem (que não são necessariamente concorrentes), há o dever geral negativo de não atentar contra as prerrogativas do direito real, independentemente da apreciação da motivação da conduta de terceiros, em termos de lealdade ou deslealdade na concorrência. Enquanto na proprie-dade o objeto do direito é um dever geral, absoluto, de abstenção de sujeitos indeterminados relativamente a um bem imaterial objetivamente considerado, a proteção genérica, por sua vez, impõe um agir com lealdade a sujeitos bem identificados pelo exercício de uma ativi-dade em relação de concorrência. Sendo assim, é mais restrito o âmbito territorial e pessoal de incidência das normas de proteção genérica contra a concorrência desleal, se comparado ao da proteção conferida pela propriedade da marca.

São diferentes os modos de aquisição da propriedade da marca e da proteção genérica de seu uso exclusivo em face da concorrência. A marca validamente registrada, protegida em todo o território nacional após sua apreensão formal exclusiva, essencial para levar ao conhecimento da parte passiva o fato da apropriação, não precisa ter sido anteriormente usada. A proteção genérica em face da concorrência, por seu turno, adquire-se pelo primeiro uso da marca. Ela incide se, numa relação de concorrência, reproduz-se ou imita-se (usa-se) marca usada pelo concorrente. O ato é meio desonesto de desviar a clientela reunida pelo concorrente em torno do signo.

SEÇÃO II CONCORRÊNCIA DESLEAL: TIPO REAL E ABERTO

A concorrência desleal não se enquadra em uma definição legal sintética. Trata-se de um fato não suscetível de ser bem delimitado em hipótese normativa551, em um conceito jurídico fechado, mas constitui um tipo real, fato sobre o qual incide um tipo legal aberto às transformações das práticas sociais e econômicas552.

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Deixando imprecisa a noção de concorrência desleal, parece ser esta a motivação do legislador: facilitar a individualização da norma, possibilitar ao julgador, diante da hipótese normativa imprecisa (tipo aberto) e de um ato concreto que se examina à luz de deveres éticos em face da concorrência, decidir se o fato constitui ou não concorrência desleal com base em precedentes do tipo (tipo real). Assim, a verificação da incidência das...

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