A Proteção Jurídica aos Refugiados no Brasil e o Direito ao Trabalho

AutorCamila Sombra Muiños de Andrade
Ocupação do AutorDoutoranda e Mestre em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Possui graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia; é advogada do Centro de Referência para Refugiados da Caritas Arquidiocesana de São Paulo.
Páginas103-115

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Introdução

Dentre o amplo e variado grupo de pessoas que mi-gram em direção a outros países, os refugiados possuem a proteção de um regime específico que tem como fundamentos essenciais a Convenção das Nações Unidas de 1951 e o Protocolo de 1967 Relativos ao Estatuto dos Refugiados. Nestes instrumentos internacionais, insere-se a proibição de sua devolução a território onde possa vir a ser vítima de perseguição. Mas os referidos instrumentos não se limitam a este aspecto da proteção, estipulando igualmente um rol mínimo de direitos que deve ser garantido aos refugiados para a sua efetiva proteção. Dentre estes, encontra-se o direito ao trabalho, expressamente previsto nos referidos instrumentos internacionais. Ocorre que este direito muitas vezes não é adequadamente implementado pelos Estados que acolhem refugiados, seja por meio de proibições legais das legislações nacionais, por razões de discriminação ou outros obstáculos.

Neste sentido, este artigo tem como objeto de estudo o direito ao trabalho dos solicitantes de refúgio e refugiados que vivem no Brasil, evidenciando os avanços e desafios na área. Para tanto, tem-se como fundamento a lei nacional de proteção aos refugiados (Lei n. 9.474/1997), que aprofunda os compromissos internacionais firmados na Convenção de 1951 e no Protocolo de 1967, além das políticas públicas orientadas para a efetivação deste direito e obstáculos reportados por esta população.

1. A proteção internacional dos refugiados

A Convenção das Nações Unidas de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados é o instrumento internacional fundamental para a proteção dos refugiados, estabelecendo sua definição e direitos mínimos aos quais são titulares. No aniversário de cinquenta anos da Convenção, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) lembrou o momento histórico da redação e aprovação deste instrumento. Neste sentido, observou que, ainda que passados anos do final da Segunda Guerra Mundial, permanecia o grave deslocamento de milhares de pessoas do continente europeu, o qual se encontrava devastado pelo conflito. Assim, líderes de diversos países se reuniram para a elaboração do documento que resultou na Convenção de 1951, em Genebra (UNHCR, 2011).

Neste instrumento, definiu-se como refugiado aquele que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, encontrava-se fora do seu país de nacionalidade ou residência e a este não podia ou desejava retornar por fundado temor de perseguição em razão de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.1Tendo em vista a competência temporal limitada da Convenção, a própria existência do ACNUR, instituição criada pouco antes para servir de seu guardião, estava prevista para ser restrita tão somente ao período de três anos (UNHCR, 2011).

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À limitação temporal, agregou-se a possibilidade de limitação geográfica pelos Estados, aos quais foi facultada a interpretação dos dispositivos da Convenção como "eventos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa"2. De fato, naquele momento, procurava-se dar uma resposta específica aos refugiados e apátridas vitimados pelo conflito na Europa, não se pretendendo um documento que servisse a propósito de reger deslocamentos forçados futuros, ou em outras regiões (UNHCR, 2011). Assim, foi com escopo restrito nos sentidos geográfico e temporal que a Convenção de 1951 tratou da proibição de não devolução (non-refoulement), princípio essencial do documento que interdita o envio de um solicitante de refúgio a território onde possa sofrer perseguição (STRAW, 2011, p. 9). Além deste direito essencial, a Convenção também prevê outros padrões mínimos de tratamento aos solicitantes de refúgio e refugiados, conferindo-lhes direitos como de educação, documento e trabalho, e ressalvando-se aos Estados a prerrogativa de expandirem estes direitos fundamentais por meio de um tratamento mais favorável. (UNHCR, 2010)

Apesar da intenção inicial de atenção ao contexto específico pós Segunda Guerra Mundial, o tempo terminou por evidenciar a necessidade de manutenção de um regime jurídico internacional de proteção aos solicitantes de refúgio e refugiados. Neste sentido, justificou-se a elaboração de documento que garantisse o integral compromisso dos Estados, sem as referidas limitações geográfica e temporal. Com este objetivo, diversos Estados firmaram o Protocolo de 1967 sobre o Estatuto dos Refugiados3.

E a realidade que justificou a elaboração dos referidos instrumentos internacionais se mantém cada vez mais atual. De fato, o número de pessoas vítimas de deslocamentos forçados ultrapassou, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, 50 milhões de pessoas, em 2013 (UNHCR, 2014c), uma realidade que vem se agravando cada vez mais. De acordo com mais recentes dados do ACNUR (2015), este número chegou a 59.500 milhões no final de 2014. A grave crise na Síria é uma das razões no grande deslocamento forçado de pessoas, além de situações de conflito em países africa-nos como Eritreia, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Somália e Sudão, conforme observação da agência da ONU (UNHCR, 2015).

No campo das migrações e refúgio, este momento de deslocamento de populações é o tema central de atenção, na medida em que requer uma resposta de emergência. Um dos maiores desafios humanitários, contudo, não corresponde ao tempo que acompanha o movimento das populações, mas à prolongada situação de refúgio (LOESCHER; MILNER, 2009). De fato, as realidades de graves e persistentes situações humanitárias são responsáveis por um longo (ou até permanente) exílio dos refugiados, que pode alcançar vinte anos, contextos para os quais não há uma solução previsível no futuro (LOESCHER; MILNER, 2009).

Há três soluções duradouras propostas pelo ACNUR à prolongada situação de refúgio: repatriação voluntária, reassentamento e integração local. A primeira consiste no auxílio ao retorno do refugiado ao país de origem, quando possível, a partir de uma estratégia de reintegração. A segunda é uma alternativa para aqueles refugiados que não podem retornar aos países de origem em segurança, mas cujos locais de acolhida tampouco oferecem os mínimos padrões de segurança ou acesso a direitos. A terceira, por sua vez, envolve um processo complexo econômico, social e cultural, que pode ter como resultado, inclusive, a aquisição pelo refugiado na nacionalidade do país de acolhida (UNHCR, Durable Solutions).

Dentre as soluções duradouras, a repatriação voluntária é mais buscada e incentivada pela referida organização. Entretanto, nem todos os refugiados podem - ou mesmo poderão um dia - retornar aos seus países de origem, dada a persistência dos motivos responsáveis pelo deslocamento, como a guerra e a perseguição. Ao mesmo tempo, os programas de reassentamento não trazem uma resposta global, beneficiando uma pequena minoria dos refugiados, como aqueles em situação de especial vulnerabilidade. Assim, tendo em vista a situação de pessoas que permanecem indefinidamente nos países de acolhida, é necessária uma solução para estes refugiados no âmbito destes Estados (CRISP, 2004).

Partindo-se do pressuposto de que é essencial uma adequada integração local dos refugiados, tendo em vista a crescente situação prolongada e, muitas vezes, definitiva do deslocamento, passa-se ao estudo de uma de suas ferramentas: o direito ao trabalho. Como será visto a seguir, este direito é um dos instrumentos essenciais à garantia da autonomia necessária à proteção dos refugiados nos estados de acolhida.

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1.1. O direito ao trabalho na Convenção da ONU de 1951

Quando da redação da Convenção de 1951, o delegado dos Estados Unidos, Louis Henkin, afirmou que "sem o direito ao trabalho, todos os outros não têm significado"4. Este reconhecimento do caráter essencial do direito ao trabalho para a efetividade da proteção aos refugiados encontrou resposta na Convenção, que dedicou quatro de seus artigos ao tema.

No art. 17, ao refugiado é conferido o direito de exercer profissões assalariadas, ressaltando-se que os Estados "darão a todo refugiado que resida regularmente no seu território o tratamento mais favorável dado, nas mesmas circunstâncias, aos nacionais de um país estrangeiro no que concerne ao exercício de uma ativi-dade profissional assalariada".

No mesmo sentido, o art. 18 dispõe que os Estados garantirão aos refugiados que "se encontrarem regularmente no seu território tratamento tão favorável quanto possível [...] no que concerne ao exercício de uma profissão não assalariada na agricultura, na indústria, no artesanato e no comércio, bem como à instalação de firmas comerciais e industriais".

No art. 19, é previsto aos refugiados que "residam regularmente no seu território e sejam titulares de diplomas reconhecidos pelas autoridades competentes do referido Estado e que desejam exercer uma profissão liberal, tratamento tão favorável quanto possível [...]"

Por fim, no art. 24, a Convenção dispõe que deve ser concedido tratamento igualitário aos refugiados que residam regularmente nos âmbitos da legislação do trabalho e previdência social.

Importante notar que, enquanto os arts. 17, 19 e 24 se reportam a refugiado que "resida regularmente", o art. 18 dispõe sobre aquele que "se encontre regular-mente no seu território". A diferença dos termos utilizados é relevante, na medida em que a interpretação mais frequente é no sentido de que a Convenção de 1951 pretendeu conferir direitos mais amplos conforme se estreitam os laços de um refugiado com o país de acolhida. Nesta...

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