A proteção do consumidor nos contratos de crédito para habitação

AutorAlexandra Cruz
Páginas96-122

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Excertos

“O comportamento irresponsável de alguns participantes no mercado foi considerado o leitmotif da crise financeira, capaz de abalar o princípio da confiança entre os participantes na economia, máxime, nos consumidores, com consequências sociais e económicas potencialmente graves”

“Na origem da diretiva em análise (2014/17/UE, de 4 de fevereiro) está a crise dos subprimes, que conduziu a uma radical alteração do paradigma do crédito à habitação”

“O sistema europeu é, geralmente, um sistema de full recourse, o que implica que o mutuário permanece devedor mesmo que o seu imóvel seja integralmente executado (fruto do incumprimento) se o produto da execução não chegar para pagar a sua dívida”

“Em especial, qualquer proposta contratual que seja feita ao consumidor deverá ser acompanhada da FINE, a não ser que esta lhe tenha já sido entregue e que as características da proposta se coadunem com as informações anteriormente prestadas”

“A avaliação de solvabilidade deve ter em consideração a situação económica e financeira do consumidor (receitas e despesas), prevendo-se a possibilidade de os Estados-membros autorizarem a resolução do contrato se se demonstrar que o consumidor prestou falsas ou incorretas informações”

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1. Enquadramento normativo do direito europeu do consumo

A Diretiva 2014/17/UE, de 4 de fevereiro, objeto da presente análise, é relativa à matéria dos contratos de crédito dos consumidores para imóveis de habitação, alterando as Diretivas 2008/48/CE e 2013/36/UE e o Regulamento (UE) 1.093/2010.

Ao nível normativo o direito comunitário desenvolveu diversos instrumentos. Sob o tema “solidariedade”, no capítulo IV da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, são consagradas regras que visam a proteção de interesses vários (artigos 27º a 38º). No âmbito desses interesses, emerge um conjunto de direitos relativos a diversas matérias (trabalhadores, tutela da família, de interesses económicos gerais, ambiente, e, finalmente, dos consumidores). O disposto no art. 38º determina que “as políticas da União devem assegurar um elevado nível de defesa dos consumidores”.

O tratado da União Europeia determina no seu art. 169º que, “a fim de promover os interesses dos consumidores e assegurar um elevado nível de defesa destes, a União contribuirá para a proteção da saúde, da segurança e dos interesses económicos dos consumidores, bem como para a promoção do seu direito à informação, à educação e à organização para a defesa dos seus interesses”.

Acrescem a essas normas outros instrumentos legislativos no domínio da proteção do consumidor como sejam as Diretivas 84/450/ CEE e 97/55/CE, relativas à publicidade enganosa e comparativa, a Diretiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de julho, relativa à responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, alterada pela Diretiva 1999/34/CE, do Parlamento e do Conselho, de 10 de maio, a Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, alterada pela Diretiva 2011/83/CE, a Diretiva 98/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 1998, relativa à defesa dos consumidores em matéria de indicações dos preços dos produtos oferecidos aos consumidores, a Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio de 1999, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas,

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transposta para a ordem jurídica interna pelo Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, alterado pelo Decreto-Lei 84/2008, de 21 de maio, a Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno, transposta para o sistema português pelo Decreto-Lei 57/2008, de 26 de março, a Diretiva 2008/48/CE2do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa aos contratos de crédito com os consumidores, transposta pelo DL 133/2009, a Diretiva 87/102/CEE, do Conselho, de 22 de dezembro de 1986, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-membros relativas ao crédito ao consumo, alterada pela Diretiva 90/88/CEE, do Conselho, de 22 de fevereiro, e pela Diretiva 98/7/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro, que estabeleceu regras comunitárias para os contratos de crédito ao consumo, tendo sido transposta para o ordenamento jurídico interno pelo Decreto-Lei 359/91, de 21 de setembro3, a Diretiva 2009/22/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa às ações inibitórias em matéria de proteção dos interesses dos consumidores, a diretiva que estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamentos das transações comerciais, a Diretiva 2011/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, transposta através do Decreto-Lei 24/2014, de 14 de fevereiro.

2. Antecedentes e motivações da Diretiva 2014/17/UE, de 4 de fevereiro

Em março de 2003, a Comissão lançou um processo de identificação e avaliação do impacto dos obstáculos ao mercado interno no domínio dos contratos de crédito para imóveis de habitação. Posteriormente, em 18 de dezembro de 2007, a Comissão anunciava a intenção de proceder a uma avaliação do impacto das diferentes opções de ação política, nomeadamente no que respeita à informação pré-contratual, às bases de dados sobre o crédito, à solvabilidade, à taxa anual de encargos efetiva global (TAEG) e à consultoria sobre contratos de crédito.

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O comportamento irresponsável de alguns participantes no mercado foi considerado o leitmotif da crise financeira, capaz de abalar o princípio da confiança entre os participantes na economia, máxime, nos consumidores, com consequências sociais e económicas potencialmente graves4.

A Diretiva 2014/17/UE, de 4 de fevereiro, constitui um documento de enorme importância no que respeita à incursão da União em matéria de direito privado. Pretende-se “estabelecer princípios sobre normas idóneas em matéria de concessão de crédito para imóveis de habitação”, tendo sido identificados como principais problemas neste mercado a concessão e a contratação do crédito e a intervenção dos intermediários financeiros.

Tendo em conta a especificidade dos contratos de crédito para bens imóveis e as diferenças na evolução do mercado e nas condições existentes nos vários Estados-membros, especialmente no que diz respeito à estrutura do mercado e aos participantes no mercado, às categorias de produtos disponíveis e às formalidades inerentes ao processo de concessão de crédito, os Estados-membros devem ter a possibilidade de manter ou introduzir disposições legais nacionais.

Em particular, podem manter ou introduzir disposições nacionais em domínios como o direito dos contratos relativamente à validade dos contratos de crédito, o direito de propriedade, o registo predial, a informação contratual e, na medida em que não sejam regidas pela diretiva em comento, as questões posteriores à celebração do contrato com posições mais restritivas do que as previstas.

3. Contributo da crise económico-social e os seus reflexos na insolvabilidade do devedor

Na origem da diretiva em análise (2014/17/UE, de 4 de fevereiro) está a crise dos subprimes, que conduziu a uma radical alteração do paradigma do crédito à habitação.

Em Portugal, a expansão do crédito aos consumidores deu-se na década dos anos 1990, acompanhando a liberalização dos mercados financeiros e o aumento do rendimento das famílias. A inexistência de um mercado de arrendamento e a modernização da oferta comercial contribuíram também para a expansão deste fenómeno5.

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Na verdade, de uma forma generalizada, a conjuntura económica verificada nos últimos 30 anos permitiu desencadear níveis substanciais de concessão de crédito por parte de instituições financeiras, as quais, por força de um mercado cada vez mais competitivo, concederam crédito massivamente, sem uma correta análise à capacidade financeira dos mutuários, originando uma situação de incumprimento contratual ou default6.

A crise dos subprimes é, sem dúvida, o tema de referência que originou mecanismos como o presente Diretiva 2014/17/UE. Teve origem nos EUA e caracterizou-se pela adoção de políticas económicas seguidas a partir da década de 1970, desenvolvidas na década de 1980, de incentivo à compra de habitação própria: deduções fiscais, subvenções para a compra de casa, sendo o objetivo a criação de uma ownership society7.

Inicialmente, os empréstimos imobiliários eram concedidos apenas aos primes – aqueles que davam garantias de pagar, pediam apenas uma percentagem não superior a 80% do valor da aquisição, tinham rendimentos comprovados suficientes, apresentando uma boa relação financiamento e garantia, sendo este crédito garantido por hipoteca8.

Posteriormente, passou-se à concessão dos empréstimos a agregados suburbanos de parcos rendimentos. O clima otimista e de euforia económica levou a situações extremas na concessão do crédito...

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