Proteção do Estado

AutorJadir Cirqueira de Souza
Páginas138-156

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Foi visto que existe interdependência entre a atuação da família, da sociedade e do Estado. Todas as instituições são imprescindíveis na luta pela erradicação ou diminuição dos problemas infanto-juvenis. A atuação das diferentes instituições deve ser harmônica, conjugada e equilibrada, uma vez que o sucesso depende da participação de todas.

Por outro lado, a falta de atuação e/ou proteção da família e da sociedade tem sido suficientemente cobrada pelos integrantes dos órgãos estatais. A sociedade e a família brasileira são duramente cobra-das pelo Estado, por meio de medidas coercitivas ou punitivas. Dois

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exemplos recorrentes servem para demonstrar que o Estado é pródigo em cobrar das famílias e da sociedade, correção de atitudes e, ao mesmo tempo, omisso nas suas responsabilidades e atribuições.

Em relação à sociedade pode ser destacado o fato de que o Brasil possui uma das maiores cargas tributárias da América Latina. Normal-mente, como contribuinte, o cidadão paga o equivalente a quarenta por cento dos seus rendimentos mensais. O Estado deve ser mantido com os valores auferidos, via arrecadação tributária a punição é dupla: alta carga tributária e precários serviços públicos.

Porém, ainda que seja difícil lutar contra a voracidade fiscal, o mais grave é que os serviços públicos federais, estaduais e municipais - sobretudo na área da assistência social - são de qualidade duvidosa e, muitas vezes, inexistentes.

No tocante às famílias, na maioria das vezes pobres e desinformadas, são comuns as ações jurisdicionais de perda, suspensão ou destituição do poder familiar daqueles que não cuidam da formação dos filhos. Enfim, o Estado brasileiro é generoso na criação de leis e medidas administrativas que restringem os direitos das famílias.

No entanto, o mesmo Estado que é diligente na decretação do rompimento definitivo do vínculo familiar dos filhos das famílias pobres e sem amparo social não consegue impor medidas capazes de promover a recuperação e/ou inclusão social da família. Ao longo dos anos tem sido relativamente fácil punir pais pobres por descumprimento dos deveres paternos.

Quando o Estado é acionado para oferecer tratamento médico, social, pedagógico, jurídico, etc., em relação aos pais de família observa-se constante negativa. De outra banda, o Estado punitivo é rápido e ágil, principalmente contra as camadas mais carentes da população, porém, na disponibilização de serviços públicos eficientes e de qualidade continua lento, burocrático e ineficiente.

A partir da percepção da insuficiência das medidas que tem sido adotadas, até o momento, e antes de destacar as diversificadas formas de atuação estatal e suas respectivas competências e responsabilidades, torna-se interessante recordar a noção jurídica de Estado. As idéias não são conclusivas, uma vez que a própria configuração, tamanho, elementos, funções e objetivos estatais tem alcançado altos índices de variabilidade semântica.

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Comumente, alguns elementos são citados na composição de um Estado: povo, território, soberania e governo. De modo objetivo, para os objetivos do trabalho, da conjugação dos elementos acima, permite-se definir o Estado como uma nação politicamente organizada, segundo MALUF.22No plano histórico - sinteticamente - o conceito de Estado passou por várias etapas, fases e significados. Primeiro, surgiu com o termo polis, na Grécia; segundo, com o termo civitas, em Roma e estado, durante a Idade Média. No entanto, segundo FRIEDE, foi Maquiavel o precursor do termo Estado com grau de cientificidade.23A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 foi um dos mais importantes fundamentos da noção de Estado e da ruptura com o absolutismo. Além disso, constata-se que o documento inter-nacional exigia para a afirmação básica de Estado, à época, que suas ações fossem norteadas e dirigidas por uma Constituição, inclusive com fixação da separação de poderes.

A evolução do conceito de Estado e suas variadas configurações, a partir da Revolução Francesa de 1789, é magistralmente explicitada por DA SILVA24, com base na seguinte seqüência histórica: primeiro, surgiu o Estado de Direito; após, o Estado Social de Direito; e, final-mente, o Estado Democrático de Direito.

Inicia-se com o Estado de Direito.25 Suas características estruturais apoiavam-se nas idéias do liberalismo e na submissão do cidadão ao império da Lei. Já existia a divisão de poderes estatais (executivo, legislativo e judiciário) e a fixação dos direitos individuais. É possível destacar a forte prevalência da defesa da propriedade privada e a passividade estatal na solução dos conflitos individuais. Enfim, embora, posteriormente, tenha se mostrado insuficiente para resolver os problemas sociais e econômicos da época, foi relevante na medida em que, pela primeira vez no mundo ocidental, o Estado absoluto passou a sofrer limites legais na sua atuação.

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Passa, depois, pelo Estado Social de Direito.26 Aqui, percebeu-se a insuficiência da posição meramente neutra do Estado. A neutralidade estatal concorreu para a perpetuação de graves injustiças, uma vez que não lhe cabia a prestação positiva de socorro aos direitos das pessoas hipossuficientes. A partir da percepção de que o Estado inerte apenas perpetuava as graves injustiças sociais, com a adoção dos ideais - sociais e econômicos - contidos nas Constituições, mexicana e alemã, constatou-se a necessidade do Estado promover direta intervenção social e econômica como forma de prestigiar o princípio da isonomia. Assim, a nota característica centra-se na obrigação do Estado de promover a justiça social, por meio da intervenção na ordem econômica e social, sem prescindir do Direito.

Finalmente, a partir da insuficiência das idéias anteriores, relativas ao Estado Social e de Direito, emerge o Estado Democrático de Direito.27 A imprecisão terminológica do primeiro - Social - e a forte neutralidade do segundo - Direito - concorreram para o surgimento do terceiro - Democrático. Suas características predominantes residem na agregação do social e da lei na integral proteção dos direitos do homem, a partir da consideração de que este deve ser o centro de gravitação de todas as atenções estatais. Assim, dentre os princípios fundamentais elencados nos arts. , e3º da CF, o Estado Democrático de Direito tem como um de seus objetivos programáticos a realização da justiça social e o respeito à dignidade da pessoa humana.

A partir das duas premissas fixadas - fatos históricos e a evolução do Estado - percebe-se que o Estado brasileiro inegavelmente possui duas significativas dívidas a resgatar na defesa da cidadania.

A primeira, em relação ao homem, sobretudo no tocante à defesa de seus direitos fundamentais, individuais, coletivos e sociais. O Estado não tem conseguido, via políticas públicas e medidas governamentais, oferecer desejável qualidade de vida ao cidadão. Os constantes ataques ao meio ambiente, a secular corrupção governamental, a crescente criminalidade e o desemprego em massa são apenas alguns sintomas evidentes da falta de eficaz atuação.

Na segunda, em relação aos direitos das crianças e dos adolescentes constata-se que a realidade ainda é muito mais drástica, uma vez que ao longo da evolução histórica, constatou-se que as crianças e os adolescentes,

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somente foram considerados sujeitos ou titulares de direitos e deveres após a entrada em vigor da CF e, posteriormente do ECA, em 1990.

Na realidade, o Estado brasileiro por meio de seus integrantes não sentia-se na obrigação indeclinável de zelar pela proteção dos direitos infanto-juvenis. Como visto, a perspectiva era meramente punitiva e segregadora. Assim, em relação às crianças e aos adolescentes, principalmente, no século XX, perduraram mais fortemente as idéias meramente punitivas e assistencialistas. Não havia, portanto, a idéia da garantia da proteção integral e da perspectiva de considerar a comunidade infanto-juvenil em desenvolvimento.

Assim, de forma comparativa podem ser filtradas duas constatações. A primeira em relação aos adultos. Os cidadãos brasileiros sempre possuíram direitos frente ao Estado, porém, ainda não conseguiram exercê-los em sua plenitude. Encontra-se distante a idéia da plenitude da proteção dos direitos humanos, embora largos passos tenham sido dados nesse direção.

Segundo, diferentemente dos adultos, por mais de quatro séculos crianças e adolescentes sequer foram considerados titulares de direitos. Eram tratados como objetos. É importante salientar que a última afirmação deve ser vista em seus devidos termos, uma vez que já existiam direitos constitucionais, conforme explicitado na CF de 1937. O que não existia, na verdade, era a visão de que o respeito aos direitos das crianças e dos adolescentes era indispensável para o fortalecimento da cidadania. Tratava-se, entretanto, de disposição constitucional sem real colocação prática, como têm acontecido em todas as constituições.

É correto relembrar que a dívida infanto-juvenil é secular. Teve início com o descobrimento do Brasil, passou pela independência em relação a Portugal, ultrapassou a fase da primeira República, inclusive todo o século XX, até os dias atuais.

Na realidade, os direitos infanto-juvenis sempre foram tratados pelo Estado, nos quase 500 anos de Brasil, numa perspectiva de menor importância. Algumas vezes, aliás, de nenhuma importância, conforme descrito na parte histórica.

Notoriamente, o Código Civil de 1916 tratava dos interesses dos menores na busca da exclusiva proteção patrimonial do início do século XX. Portanto, a defesa do Estado era estimulada somente na proteção do patrimônio material dos menores. Prova da afirmativa é o fato de que a maioria dos dispositivos legais, que tratava dos menores de 18 anos, apenas elencava questões de cunho patrimonial.

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De outro lado, as legislações menoristas - Códigos de Menores - que se sucederam nos...

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