Proteção da Criança e do Adolescente contra Abuso e Negligência

AutorAna Flávia Messa; Antônio Ernani Pedroso Calhao
Páginas328-334

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1. Introdução

Em comemoração aos 25 anos da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, ocupamo-nos no presente artigo do estudo da proteção da criança e do adolescente contra abuso e negligência, numa perspectiva universalista, no âmbito da comunidade internacional, e na perspectiva estatal, sobretudo no Brasil, num momento em que se anuncia uma nova ordem de garantais para a área da infância e juventude contra todas as formas de violência, negligência e opressão.

2. Perspectiva internacionalista

A temática protetiva, como posta pela doutrina contemporânea, remete a uma visão de criança inserida em um modelo familiar típico da sociedade industrial e de consumo. O esgarçamento das relações sociais na era da Revolução Industrial modificou substancialmente o padrão familiar com o afastamento compulsório da mulher das atividades de proteção e cuidado com a família. A História registra a formação do proletariado, lançando ao mercado de trabalho as populações economicamente ativas — homens e mulheres em condições de assumir o labor — como também a força de trabalho de infantes e idosos, ou seja, daqueles segmentos sociais mais vulneráveis pela precocidade ou senilidade1.

O retrato mais cruel dessa realidade é feito pelo historiador Eric Hobsbawm2 ao citar o filósofo Engels3, realçando o abandono das crianças

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que “crescem entregues a si próprias como a erva daninha”, associando à reflexão, a já conhecida “terceirização” da educação, ou seja, atribuição a estranhos daqueles cuidados de formação e afeto indispensáveis ao fortalecimento da psique dos nascituros na tenra infância4. A moderna psicologia demonstra, a fartar, que é o afeto a base sensorial na qual assenta o relacionamento do ser humano consigo e o instrumentaliza para a leitura do mundo individual de cada um. São os pais, ou responsáveis, que ensinam como o mundo funciona. A ausência é uma forma de violência cujas marcas projetam-se no futuro adulto, com tendências a se reproduzirem. A infância é o período de formação de parâmetros comparativos; o que aprende ganha caráter de verdade inquestionável. Eis um ciclo vicioso a ser evitado com políticas públicas de proteção à infância e à maternidade.

2.1. A evolução histórica da doutrina da integral proteção

Conjugando-se a base histórica com a evolução dos estudos psicossociais relativos à família, é possível resgatar a doutrina da proteção integral, que paulatinamente foi se formando na tradição universalista. A pauta de uma agenda positiva de proteção da criança traz ínsita não só ações visando à redução das carências afetivas e materiais, como também estabelece as bases normativas de proteção à opressão e negligência no âmbito privado — como a exploração do trabalho infantil —, e em face do próprio Estado, na aplicação das medidas protetivas.

No plano internacional, a preocupação com a saúde, a vida social e familiar, o bem-estar da mulher e do filho desde a gestação, o parto e a amamentação, alvo dos organismos internacionais, com destaque para a extinta Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho, ao cuidar objetivamente do assunto, entre 1919 e 1920. Uma questão de barbárie era a ocorrência de tráfico de mulheres e crianças que necessitavam de atenção. Concomitante o direito da criança a merecer a atenção dos organismos internacionais, sendo a primeira referência de índole protetiva a Declaração de Genebra dos Direitos da Criança, de 19245. Anota a doutrina que, embora seja nobre a sua motivação, tal declaração não teve o impacto para se firmar no âmbito das sociedades industriais, dado o seu caráter meramente declaratório e não sancionador6.

À Declaração de Genebra seguiram-se a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 19487, com expressa proteção aos direitos das crianças, e a Declaração dos Direitos da Criança de 19598 da Assembleia Geral da ONU, que, enquanto instrumento declaratório, constituiu-se em um padrão moral para os direitos da criança, apesar de não comportar quaisquer obrigações jurídicas. Também podem se enquadrar nos documentos internacionais de proteção à criança as Regras de Beijing de 19859,

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que estabelecem as regras mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude.

Contudo tais instrumentos eram declaratórios e não vinculativos. O caráter formativo e educativo deveria ser priorizado, e o seu acesso ao mercado de trabalho, somente admitido após ter atingido a idade mínima apropriada. Sob este prisma a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 marcou, decisivamente, esse intento, com a designação do Ano Internacional da Criança em 1979. Proteger os interesses das crianças e a conscientização pública e política da proteção integral foram a pauta da Assembleia Geral das Nações Unidas para a apresentação do projeto inicial de uma Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.

Após uma década de negociações, a Convenção foi aprovada a 20 de novembro de 198910. Até 2013, essa convenção contava com a ratificação de 193 Estados-partes, sendo indicado como o tratado de direitos humanos com o maior número de adesões na esfera internacional11.

3. Perspectiva estatal

Embora já no tempo do Código de Menores12 se tivesse revelado a necessidade de garantir os direitos do menor em situação irregular, foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, criando a Doutrina da Proteção Integral, que a criança e o adolescente passaram a ser sujeitos de direitos.

Tanto a Constituição Federal, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, diferentemente da antiga visão pela qual os menores eram apenas tutelados pelo Estado e, na maioria das vezes, abandonados em face da inexistência de políticas públicas, superaram a dicotomia jurídica do vetusto Código de Menores brasileiro que diferenciava “os menores em situação irregular” e aqueles que se encontravam fora desse padrão, para reconhecer-lhes a especialidade da peculiar condição de ser humano em desenvolvimento13. Com isso, transmuda-se a condição da criança e de adolescentes de objeto de direito no antigo Código de Menores para sujeitos de direitos com o ECA, ou seja, alterando a condição de sujeito passivo para sujeito ativo na relação jurídica.

Em linha de arremate, é forçoso reconhecer a influência universalista na construção dos novos paradigmas protetivos à criança e ao adolescente. De se destacar que a universalidade, em direitos humanos e áreas afins, remete a uma tríplice arquitetura: titularidade, temporalidade e culturalidade14. A criança e o adolescente são titulares primevos da humanidade, porquanto dotados da condição especial e essencial para o usufruto da vida. À luz do tempo a infância revela situação de especial universalidade em qualquer tempo e lugar. Culturalmente, apesar de suas diferenças universalistas e relativistas — apenas para citar visões contrapostas —, a criança ostenta a sua primazia no seio da humanidade.

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Ao lado do viés universal, mas com a mesma ênfase, há a imperatividade do comando normativo dos direitos humanos, enquanto um regime jurídico inalienável e indivisível, por força da Declaração de Viena15. Resulta daí um standard mínimo que compromete o Estado a respeitá-lo, defendê-lo e promovê-lo16. Mesmo que possa se admitir uma aparente colisão normativa, tem lugar o princípio da primazia da norma mais favorável ao indivíduo. Ensina Cançado Trindade que “no domínio da proteção dos...

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