A proteção à relação de emprego e a (in)constitucionalidade do ato de denúncia da Convenção n. 158 da OIT

AutorDaniel Gonçalves de Melo
CargoJuiz do Trabalho do TRT da 14ª Região (RO e AC), sendo Titular da Vara do Trabalho de Epitaciolândia, no Estado do Acre. Pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho pela PUC/MG
Páginas17-29

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1. Introdução

O trabalho é, sem sombra de dúvidas, um dos elementos fundamentais na dinâmica das relações sociais, sendo mesmo um componente da própria personalidade do indivíduo.

Com efeito, ao se conhecer uma pessoa, pergunta-se comumente, após o seu nome, o que faz ou qual a ocupação desse indivíduo.

Por essas e por múltiplas outras razões, o desemprego é inegavelmente o maior problema social da atualidade.

O desemprego, em uma sociedade eminentemente capitalista, destrói a autoestima, aniquilando o ser humano, produzindo, ao mesmo tempo, uma série de problemas que atingem toda a coletividade.

Não se desconhece que a causa determinante do desemprego é a falta de políticas macroeconômicas que promovam a abertura e a manutenção de postos de trabalho.

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Todavia, esse problema social também tem ligação com a forma de regulação das relações de trabalho.

A facilidade jurídica conferida aos empregadores para dispensarem os seus empregados provoca uma grande rotatividade de mão de obra, o que serve tanto de incremento ao desemprego como provoca insegurança nas relações trabalhistas e, ainda, fragiliza a situação do trabalhador, provocando a precarização das condições de trabalho.

Isso ocorre porque o art. 7º, inciso I, da Constituição Federal, dispositivo que preceitua ser direito social fundamental dos trabalhadores urbanos e rurais, dentre outros, a “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos” não foi ainda objeto de regulamentação, em que pese os vinte e cinco anos de vigência da Constituição da República.

Nesse panorama, veri?ca-se que a Convenção n. 158 da Organização Internacional do Trabalho — OIT, que trata do término da relação de trabalho por iniciativa do empregador, preceitua em seu art. 4º que “não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justi?cada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço”.

A indigitada Convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional em 17 de setembro de 1992, pelo Decreto Legislativo n. 68/1992, sendo rati?cada pelo Governo brasileiro em 04 de janeiro de 1995, para vigorar doze meses depois. Posteriormente, a promulgação de sua rati?cação ocorreu com a publicação do texto o?cial no idioma português pelo Decreto n.
1.855, de 10 de abril de 1996, da Presidência da República.

Dessa forma, todos os trâmites de validade foram cumpridos em relação à Convenção n. 158 da OIT, conforme previsto nos arts. 49, incisos I e 84, inciso VIII, ambos da Constituição Federal.

Surpreendentemente, no entanto, passados apenas sete meses do início de sua vigência em território nacional, o Governo brasileiro denunciou a rati?cação da Convenção n. 158 da OIT mediante nota enviada ao Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho — RIT, assinada pelo Embaixador Chefe da Delegação Permanente do Brasil em Genebra (Ofício n. 397, de 20.11.1996). Com o Decreto n. 2.100, de 20 de dezembro de 1996, publicado em 23 de dezembro de 1996, o Presidente da República publicou a denúncia, anunciando que a mencionada Convenção deixaria de vigorar no Brasil a partir de 20 de novembro de 1997.

Tal ato de denúncia, contudo, ao contrário do que se veri?cou com o ato de rati?cação, não foi precedido da necessária aprovação do Congresso Nacional, tal como exigem os citados arts. 49, inciso I e 84, inciso VIII, da Constituição Federal.

Partindo de tais premissas, propõe-se no presente estudo analisar de modo crítico o ato de denúncia da Convenção n. 158 da OIT, sob o viés de sua constitucionalidade material e formal, aliado ainda à garantia fundamental de manutenção do emprego, lançando-se mão, para tanto, de textos doutrinários e normativos, além de precedentes jurisprudenciais.

Em um primeiro tópico, será examinado o conteúdo e os efeitos da garantia de proteção ao emprego prevista no art. 7º, inciso I, da Constituição Federal e, em um segundo, será analisado o ato de denúncia da Convenção n. 158 da OIT de modo especí?co, inclusive sua compatibilidade com o ordenamento jurídico interno, fornecendo-se, então, subsídios à instauração do debate a respeito do tema, sem a pretensão, por óbvio, de esgotar o assunto.

2. A garantia da proteção ao emprego no ordenamento jurídico brasileiro

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagra em seu art. 7º, inciso I, no

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Capítulo II — Dos Direitos Sociais, do Título II — Dos Direitos e Garantias Fundamentais, a denominada garantia de proteção ao emprego ou de manutenção do vínculo empregatício contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa.

O texto do art. 7º, inciso I, da Constituição Federal, atualmente vigente, está assim redigido:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

I – relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos.

Em consonância com a leitura desse preceito constitucional, veri?ca-se que a Carta Magna procurou estabelecer nítida restrição ou vedação à ruptura contratual por ato potestativo do empregador.

Não poderia ser diferente, já que não apenas neste dispositivo, mas em diversas outras passagens do texto constitucional, é possível inferir que o legislador constituinte originário conferiu ao trabalho um valor fundamental, de verdadeiro elemento componente do Estado Democrático de Direito.

Nesse ponto, insta salientar que, para a Constituição, a República Federativa do Brasil tem como fundamentos, entre outros, os “valores sociais do trabalho” (art. 1º, inciso IV); a ordem econômica também se funda na “valorização do trabalho” (art. 170, caput), ao passo que a ordem social tem como base o “primado do trabalho” (art. 193).

Em que pese tais preceitos constitucionais, no entanto, a doutrina e a jurisprudência dominantes tenderam a compreender que o art. 7º, inciso I, da Constituição Federal não teria o condão de produzir efeitos imediatos, na qualidade de norma programática que seria.

Nesse sentido, oportuno trazer à colação a abalizada opinião de Jorge Miranda a respeito das normas programáticas:

São de aplicação diferida, e não de aplicação ou execução imediata; mais do que comandos-regras, explicitam comandos-valores; conferem elasticidade ao ordenamento constitucional; têm como destinatário primacial — embora não único — o legislador, a cuja opção ?ca a ponderação do tempo e dos meios em que vêm a ser revestidas de plena e?cácia (e nisso consiste a discricionariedade); não consentem que os cidadãos ou quaisquer cidadãos as invoquem (ou imediatamente após a entrada em vigor da Constituição), pedindo aos tribunais o seu cumprimento só por si, pelo que pode haver quem a?rme que os direitos que delas constam, máxime os direitos sociais, têm mais natureza de expectativas que de verdadeiros direitos subjectivos; aparecem, muitas vezes, acompanhadas de conceitos indeterminados ou parcialmente indeterminados.

Tais dispositivos, contudo, não podem ser desconsiderados, não podendo se compreender que a vedação à dispensa arbitrária, para produzir efeitos, dependa da edição de uma lei complementar.

É certo que a parte ?nal do art. 7º, inciso I, da Carta Magna, remete a regulamentação da proteção à dispensa sem justa causa para a lei complementar, que preverá, dentre outros direitos, a indenização compensatória.

Contudo, também é correto mencionar que a lei complementar que vier a ser elaborada e editada não poderá permitir a dispensa meramente potestativa por parte do empregador, devendo sim regular os seus efeitos, como reintegração ao emprego, indenização compensatória, dentre outros direitos que poderiam ser assegurados ao empregado dispensado sem justi?cativa minimamente relevante.

Nesse mesmo sentido, Jorge Luiz Souto Maior1 explicita o seguinte:

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O principal papel a ser cumprido pelo direito do trabalho nos tempos presentes, portanto, é o de evitar o desemprego desmedido e despropositado, que apenas serve para incrementar a utilização de contratos que desconsideram os seus ?ns sociais e geram insegurança na sociedade.

Sob esta perspectiva, é crucial que se passe a considerar que a dispensa imotivada de trabalhadores não foi recepcionada pela atual Constituição Federal, visto que esta conferiu, no inciso I, do seu art. 7º, aos empregados a garantia da “proteção contra dispensa arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”.

Ora, da previsão constitucional não se pode entender que a proibição de dispensa arbitrária ou sem justa causa dependa de lei complementar para ter e?cácia jurídica, pois que o preceito não suscita qualquer dúvida de que a proteção contra dispensa arbitrária ou sem justa causa trata-se de uma garantia constitucional dos trabalhadores. Está-se, diante, inegavelmente, de uma norma de e?cácia plena. A complementação necessária a esta norma diz respeito aos efeitos do descumprimento da garantia constitucional.

Não se pode perder de vista, outrossim, que a leitura que defende a absoluta esterilidade da garantia de emprego mencionada no inciso I do art. 7º da Constituição Federal é altamente questionável, na medida em que a moderna teoria de e?cácia das normas constitucionais, mais ajustada à interpretação de novas constituições, tende a apreender, necessariamente, certa e?cácia às normas constitucionais, mesmo que a validade de...

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