A Propriedade Rural sob o Enfoque Ambiental

AutorAlbenir Itaboraí Querubini Gonçalves
Páginas61-86

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3. 1 A função social da propriedade rural no ordenamento jurídico brasileiro

Como visto anteriormente, foi com a inserção da função social no conteúdo do instituto proprietário que se iniciou uma mudança gradativa no paradigma privado. Embora já se tenha operado uma significativa modificação, essa não se concluiu de forma definitiva, pois ainda persiste uma forte influência da concepção clássico-liberal, bem como distorções por aqueles que não compreendem o seu correto significado e abrangência93. Por tal razão, faz-se necessária uma constante releitura tanto do instituto da propriedade quanto da sua função social, em face da dinâmica da sociedade.

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No Brasil, a Constituição de 1934, sob influência da Constituição de Weimar, foi o primeiro diploma a fazer menção expressa à função social da propriedade. Em seu art. 113, § 17, previa que o direito de propriedade não poderia ser exercido de forma contrária ao interesse social ou coletivo94. Entretanto, a Constituição de 1934 não definiu a forma de concretizar a função social da propriedade, a qual restou como dispositivo morto em face da sua inaplicabilidade, além de a referência à função social da proprie-dade ter se dado de forma genérica.

Nesse contexto, embora já houvesse a menção constitucional à função social da propriedade desde a Constituição de 1934, continuou prevalecendo, por longo período, a concepção privatista do Código Civil, tanto para a propriedade rural quanto urbana. E, em determinado ponto, a ótica civilista sobre a propriedade já não mais se coadunava com as exigências sociais sobre o referido instituto, ainda mais no que se refere às exigências da realidade agrária do país95, em que havia uma demandava de alimentos e

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de matérias-primas enquanto os proprietários não tinham uma preocupação com a sua produtividade96.

Cumpriu ao direito agrário brasileiro com a edição do Estatuto da Terra em 1964 concretizar, pela primeira vez, em nosso ordenamento jurídico, a função social da propriedade, ao prever em seu art. 2º, § 1º, os seguintes requisitos para o atendimento da função social da propriedade rural: (a) favorecer o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como o de suas famílias (eixo sociológico); (b) explorar a terra com níveis satisfatórios de produtividade (eixo econômico); (c) assegurar a conservação dos recursos naturais (eixo ambiental); e

(d) observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e os que a cultivam (eixo trabalhista)97. Importante referir que o Estatuto trouxe a exigência do cumprimento simultâneo dos citados requisitos para que a propriedade rural atenda a sua função social. Efetividade de tais disposições se deu porque o descumprimento acarretaria consequências jurídicas negativas ao proprietário, as quais vão desde a incidência de alíquotas progressivas do Imposto sobre a Proprie-

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dade Territorial Rural - ITR, impedimentos de acesso ao crédito rural e demais benefícios vinculados, até a própria perda da propriedade mediante desapropriação para fins de reforma agrária98.

A Constituição Federal de 1988 elevou ao âmbito constitucional o tratamento da função social da propriedade rural, ao estabelecer em seu art. 186 que a função social da propriedade rural seria cumprida quando atendidos, simultaneamente, além dos graus de exigência estabelecidos em lei, os requisitos99(a) de aproveitamento racional e adequado; (b) de utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (c) de observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e (d) de exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores100.

Inicialmente, verifica-se que o Estatuto da Terra foi recepcionado parcialmente pela Constituição de 1988, no que diz respeito à previsão dos requisitos da função social da propriedade. Especificamente, com referência ao eixo ambiental da função social,

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nota-se uma sensível diferença entre a Constituição de 1988, que utiliza as expressões "utilização adequada dos recursos naturais disponíveis" e "preservação do meio ambiente" (art. 186, II), e o Estatuto da Terra, que trazia a "conservação dos recursos naturais". A diferença reside, na presença das expressões "conservação" e "recursos naturais" trazidas pelo Estatuto, que demons-tram a visão reducionista e utilitarista da proteção ambiental da fase fragmentária, de natureza nitidamente antropocêntrica. Isso porque o termo "conservação" é tecnicamente empregado para as relações em que é permitido o manejo do uso humano da natureza101, ou seja, transmite a ideia de que sempre pode o proprietário intervir na natureza em sua totalidade. Da mesma forma, a expressão "recurso natural" é reducionista porque não abrange o ambiente em sua totalidade, ou seja, manifesta uma preocupação com uma parte (microbem) do meio ambiente e não com o seu todo (macrobem). Pode-se afirmar, nesse sentido, que a preocupação originária do Estatuto da Terra era no sentido de impedir o esgotamento da terra. Por sua vez, a Constituição de 1988, ao se valer da expressão "utilização adequada dos recursos naturais disponíveis", viabiliza o manejo da natureza (conservação) associado à ideia da promoção do desenvolvimento sustentável assim como também prevê a obrigatoriedade da "preservação do meio ambiente", ligada a ideia de "proteção ambiental"102.

Posteriormente, foi editada a Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, que regulamenta os dispositivos constitucionais

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relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, abrangendo os requisitos da função social da propriedade rural do art. 186.

O primeiro requisito, o requisito econômico (art. 186, inciso I, da Constituição), é atendido quando observado o aproveitamento racional e adequado da exploração da terra, ou seja, trata-se da sua produtividade. Especifica o § 1º do art. 9º da Lei nº 8.629/1993 que se considera aproveitamento racional e adequado a exploração da propriedade rural que atinja os graus mínimos de utilização e eficiência. E, segundo o art. 6º da referida lei, o grau de utilização da terra não pode ser inferior a 80%, calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel. Por sua vez, o grau de eficiência na exploração deve ser igual ou superior a 100%, de acordo com os parâmetros indicados pelo Poder Público, o qual leva em consideração a média da Região onde se localiza o imóvel rural. Resumidamente, para atender o requisito econômico do art. 186, inciso I, da Constituição, a propriedade rural deve explorar no mínimo 80% de sua área aproveitável com a eficiência mínima de 100% da média de sua Região.

O requisito ambiental ou ecológico, previsto no inciso II do art. 186 da Constituição, traz dois sub-requisitos para o seu atendimento: (a) a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e (b) a preservação do meio ambiente, conforme já referido anteriormente. A Lei nº 8.629/1993 define como adequada utilização dos recursos naturais a exploração que respeite "a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade" (conforme art. 9º, § 2º). Como exemplo, existe para o proprietário o dever de evitar a utilização de práticas agrárias que, a médio e a longo prazo, podem acarretar a erosão e a perda da fertilidade do solo. Já a preservação do meio ambiente é definida como "a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas" (art. 9º, § 3º).

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O requisito trabalhista (art. 186, inciso III, da Constituição Federal) é regulamentado pelo art. 9º, § 4º, da Lei nº 8.629/1993, que dispõe que "a observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais".

O último requisito a ser analisado é o sociológico (art. 186, IV, da Constituição), o qual é atendido quando a exploração da propriedade rural favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais, o que ocorre quando "objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel" (§ 5º do art. 9º da Lei nº 8.629/1993).

Importante destacar, como foi analisado acima, que há uma diferença técnica entre conservação e preservação do meio ambiente, o que gera questionamento acerca da existência ou não de contradição na previsão constitucional do art. 186, inc. II, ao trazer no mesmo dispositivo as expressões "utilização adequada dos recursos naturais disponíveis" e "preservação do meio ambiente"? A resposta é a negativa, pois a ideia de "utilização adequada dos recursos naturais disponíveis" refere-se a área útil da proprie-dade rural destinada a exploração agrária (leia-se também exploração da terra), assim como à área de reserva legal103com plano de manejo devidamente...

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