A propriedade humanizada

AutorCamila Bottaro Sales
CargoProfessora
Páginas78-86

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Se a relação entre indivíduo e propriedade, ao longo de milhares de anos, sempre foi um dos temas mais instigantes para os operadores de direito, muito mais o é na pós-modernidade. A complexidade do instituto propriedade nos mostra que sua evolução histórica alterou as bases sob as quais se funda o atual direito das coisas, ou seja, a propriedade estudada no direito romano passou por transformações tão significativas que hoje não podemos mais contemplar o estudo da propriedade (direito real mais amplo) desatrelado da sua funcionalidade.

A relação do ser humano com a propriedade trilhou uma trajetória na história que constantemente se modificou e ainda se modifica para atender a determinados interesses, sejam eles de natureza particular, sejam de ordem pública.

Há três pressupostos que norteiam a compreensão do presente artigo. Primeiro, o proprietário tem o direito de usar, gozar e dispor da coisa e de reavê-la do poder de quem injustamente a possua. Segundo, a propriedade é limitada. Desde os tempos mais anti-gos, a propriedade sempre foi limitada. Falar em direito de propriedade significa lembrar em todo o tempo que suas limitações condicionam o uso da coisa pelo ser humano.

O terceiro pressuposto que estabelece as bases deste artigo se destaca na Constituição da República de 1988 (CR/88), que exaltou um paradigma: a proprie-dade obriga. Valores existenciais tornaram-se normas na carta maior, que consagrou princípios e elevou a propriedade a direito fundamental, desde que cumprida sua função social. O estudo do direito de propriedade e suas limitações passou a ser condicionado a princípios como o da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da função social. O grande desafio, hoje, é a conciliação dos interesses individuais do proprietário com os interesses sociais.

Com base nos três pressupostos identificados, o presente artigo tem como objetivo analisar a inter-pretação atual da disciplina “direito das coisas”, a partir do direito real mais amplo – direito de proprie-dade –, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, o qual traduz a ideia de que propriedade só será direito fundamental se perder seu caráter egoístico, como se interpretava nos moldes do Código Civil de 1916, e atuar em favor das necessidades socais.

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Como ponto norteador da função social da propriedade utilizaremos a concretização do direito social à moradia a partir do novo direito real de concessão de uso especial para fins de moradia inserido no texto civil com a promulgação da Lei 11.481, de 2007.

1. Da patrimonialização à humanização do direito das coisas

A partir da análise jurídico-histórica do direito de propriedade podemos afirmar que a propriedade sempre foi revestida de caráter absoluto e intangível. Trata-se de um instituto presente em todas as civilizações, desde as mais antigas até as contemporâneas. De uma forma ou de outra, possuiu características distintas, ora notadamente religiosa, ora econômica, ora social ou, ainda, jurídica. Dependendo da época, esses traços tornavam-se mais marcantes na medida exigida pelas sociedades.

Falar em direito de propriedade significa falar sobre suas restrições em cada momento histórico. Desde a antiguidade as sociedades greco-romanas já analisavam a propriedade a partir de suas limitações. Eram limitações de caráter privado relacionadas ao direito de vizinhança, pois, “já em Roma, a lei fixava em dois pés e meio a largura do espaço mínimo para separar duas casas, e este espaço era consagrado ao deus da cerca” (COULANGES, 2002, p. 68).

O culto fúnebre ocorrido no interior das casas garantia a perpetui-dade da família, que deveria adorar seus antepassados para que os descendentes não fossem lançados aos deuses infernais. Na sociedade romana, posteriormente, essa concepção foi sendo modificada e traduzida muito mais em termos de relação de poder. Firmaram-se prerrogativas exclusivistas ao seu titular, ou seja, garantia-se o pleno poder de uso e gozo sobre a coisa de forma praticamente absoluta, comportando pequenas restrições de caráter privado.

No Estado monárquico havia uma “preocupação” do rei em proteger o direito de propriedade, pois da exploração do solo decorria a base econômica potencial do poder estatal.

Os regimes liberais, que se instauraram com a Revolução Francesa, caracterizaram-se pelo forte individualismo e consequente intervenção mínima do Estado na esfera privada. Na medida em que a propriedade ganhou contornos econômicos, sobretudo nas sociedades liberais, caracterizadas, entre outros, pelo individualismo exacerbado, a relação entre indivíduo e objeto permaneceu irrestrita, a fim de trazer segurança ao seu titular e garantir que sua fonte de riqueza permanecesse intocável. Essa ideia foi traduzida nos textos civilistas que conceituaram o termo propriedade pelos poderes proprietários, a partir da concepção romana de jus disponendi, jus utendi e jus fruendi.

Assim, o artigo 524 do Código Civil de 1916 deter-minava que “a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”.

Em outras palavras, o Estado liberal deixou a sua marca no que diz respeito ao direito de propriedade. O proprietário, como dito, detinha um poder quase que absoluto e irrestrito sobre seu bem. Poucas limitações ao direito de propriedade foram trabalhadas naquela época. Porém, as conturbações sociais e econômicas vividas nos séculos 19 e 20 se refletiram no direito de propriedade. Quebraram-se os antigos modelos, típicos das sociedades liberais, que são reconstruídos sob novos pilares calcados em valores humanistas, sociais, éticos que personificam o estudo do direito de propriedade e o voltam para sua funcionalidade. A proprie-dade, então, tornou-se mais dinâmica e reverteu-se das demais restrições, as quais deixaram de absorver somente os aspectos pessoais para almejar o bem comum, na medida em que os interesses coletivos foram sendo tutelados pelas legislações nacionais e estrangeiras.

A função social da propriedade, que até então era atrelada a desapropriação para fins de reforma agrária, permite uma análise extensiva ao direito à moradia ou ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Pode-se dizer que a passagem para o estado demo-crático de direito foi marcada essencialmente pela humanização do direito. O estado democrático de direito, também denominado de estado pós-moderno, é caracterizado entre outros fatores por uma socie-dade “pluralista, complexa, marcada pela revolução técnica, pela mundialização da economia e pela massificação dos meios de comunicação” (AMArAL, 2003, p. 63). Tudo isso gerou o que alguns autores chamaram de crise dos institutos privatistas: contrato, família e propriedade. Isso porque a legislação com espírito codificador já não era mais suficiente para regular os anseios da sociedade pós-moderna.

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Assim, quebram-se os velhos modelos típicos das sociedades liberais e criam-se novos paradigmas com enfoque diferenciado em relação aos institutos do direito civil, cujo objetivo é tutelar a dignidade da pessoa humana consagrada na Constituição da República de 1988, que a coloca como ponto central de todo o ordenamento jurídico.

A superação dos paradigmas da modernidade foi marcada pela passagem do individualismo ao solidarismo (AMArAL, 2003). Houve uma maior intervenção do Estado nas relações sociais, com objetivo precípuo de resguardar interesses da coletividade. Isto se fez presente inclusive no direito de propriedade.

Nas palavras do professor Adriano Stanley Rocha Souza (2007, p. 222): “Podemos dizer que, hoje, o direito real deixa o lugar do Direito que pode tudo e passa para o lugar do Direito que pode ser privado de tudo, sempre para atender aos novos princípios constitucionais”.

Pietro Perlingieri (2007, p. 224) afirma que a propriedade é situação subjetiva e relação. É situação subjetiva complexa, afinal “colocar em evidência as obrigações, ônus, os vínculos, os limites etc. é importante na medida em que, se de tal situação tem-se uma concepção unitária, a inadimplência de um deles se reflete sobre toda a situação” e, ainda, é relação, mesmo não se podendo determinar a titularidade da situação passiva.

De um lado, figura a “situação ativa de propriedade” exercida por meio do proprietário e, do outro, a coletividade que deve respeitar a situação gerada. Com isso, fica evidente que Perlingieri quer demons-trar que, tanto no âmbito ativo como no passivo, tem que haver um dever que pressupõe determinados comportamentos, ações e abstenções, e um dever de cooperação solidária e não de subordinação. Por fim, conclui o autor italiano que o aspecto funcional da propriedade é o...

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