A propriedade como Direito Fundamental

AutorJoão Luiz Barboza
CargoMestrando em Direitos Humanos pelo Centro Universitário FIEO | UNIFIEO
Páginas46-56

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Recebido em 04|08|2008 | Aprovado em 14|10|2008

Orientadora | Adriana Zawada Melo

Introdução

Este artigo não nos conduz além da pretensão de buscar a origem histórica do direito de propriedade, especialmente a propriedade imobiliária, procurando entender a sua inserção na concepção de direito fundamental.

Posto que os direitos fundamentais são entendidos como sendo aqueles que compõem um núcleo mínimo considerado essencial para a vida digna de cada indivíduo, buscar-se-á entender como se insere nesta conceituação o direito de propriedade, bem como a sua positivação em algumas das declarações históricas de direitos humanos e nas constituições brasileiras.

Procurar-se-á trazer à reflexão e ao debate a consideração do direito de propriedade como direito fundamental, face à sua característica de direito cujo objeto está relacionado essencialmente à capacidade aquisitiva do indivíduo, enquanto titular em potencial.

Nesta perspectiva, é que se evidencia a necessidade de sua limitação apropriadamente prevista na nossa Constituição, visando à preservação do uso da propriedade com a observância da sua função social.

1 Definição de propriedade

Falar de um tema qualquer exige a delimitação do seu entendimento, de forma a tornar compreensível àquele que toma contato com o texto o alcance daquilo que se propõe transmitir, evitando-se o mais possível extravasar o limite do pretendido no objetivo proposto.

Assim é que aqui se procurará defi nir a propriedade, tal como estabelecida no vínculo do homem à terra, entendida no seu sentido estritamente imobiliário e privado, por mais extenso que seja o conteúdo que se possa extrair do vocábulo "propriedade", que comporta grande número de acepções e pode, portanto, levar o leitor a entendimentos diversos daquele que aqui se pretende invocar, qual seja a propriedade privada imóvel.

Buscamos na obra do romanista José Carlos Moreira Alves o auxílio para expressar uma defi nição, que, embora estreita, traduza o essencial para o nosso mister. Diz o autor:

Os romanos não defi niram o direito de propriedade. A partir da Idade Média é que os juristas, de textos que não se referiam à propriedade, procuraram extrair-lhe o conceito. Assim, com base num rescrito de Constantino (C. IV, 35, 21), relativo à gestão de negócios, defi niram o proprietário como suae rei moderator et arbiter (regente e árbitro de sua coisa); de fragmento do Digesto (V, 3, 25, 11), sobre o possuidor de boa-fé, deduziram que a propriedade seria o ius utendi et abutendi re sua (direito de usar e abusar da sua coisa); e de outra lei do Digesto (1, 5, pr.), em que se define a liberdade, resultou a aplicação desse conceito à propriedade que, então, seria a naturalis in facultas eius quod cuique facere libet, nisi si quid aut ui aut iure prohibetur (faculdade natural de se fazer o que se quiser sobre a coisa, exceto aquilo que vedado pela força ou pelo direito).1

Então, para o âmbito deste trabalho, assumimos a defi nição de direito de propriedade como sendo a faculdade natural de se fazer o que se quiser sobre a coisa, exceto aquilo que vedado pela força ou pelo direito.

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2 Origem histórica

A ligação do homem com a terra remonta à Antiguidade e é apontada pela doutrina como tendo sua origem histórica, assim como a da família, fundamentada na religião, com algumas variações de acordo com cada cultura, porém, em qualquer caso, muito diferentemente da idéia que hoje temos do instituto em análise:

Eis uma instituição dos antigos da qual não podemos formar idéia através do direito de propriedade no mundo moderno. Os antigos basearam o direito de propriedade em princípios diferentes dos das gerações presentes; e daqui resulta serem as leis que o garantiram sensivelmente diversas das nossas.

Sabe-se terem existido raças que nunca chegaram a instituir a propriedade privada entre si, e outras só demorada e penosamente a estabeleceram. Efetivamente não é problema fácil, no começo das sociedades, saber-se se o indivíduo pode apropriar-se do solo e estabelecer tão forte vínculo entre a sua própria pessoa e uma porção de terra, a ponto de poder dizer: "Esta terra é minha, esta terra é parcela de mim mesmo." Os tártaros admitiam o direito de propriedade, no que dizia respeito aos rebanhos, e já não o concebiam ao tratar-se do solo. Entre os antigos germanos, segundo alguns autores, a terra não pertencia a ninguém; em cada ano a tribo indicava a cada um dos seus membros o lote para cultivar, e mudava no ano seguinte. O germano era proprietário da colheita, mas não o dono da terra. Ainda acontece o mesmo em parte da raça se mítica e entre alguns povos eslavos.

(...)

Há três coisas, que desde os tempos mais antigos, se encontram fundadas e estabelecidas solidamente pelas sociedades gregas e itálicas: a religião doméstica, a família e o direito de propriedade; três coisas mostrando originariamente manifesta relação entre si e que parece terem mesmo andado inseparáveis.

A idéia de propriedade privada estava na própria religião. Cada família tinha o seu lar e os seus antepassados. Esses deuses só podiam ser adorados pela família, só à família protegiam: eram propriedade sua.2

A história da ligação do homem com a terra desde os tempos antigos vai além da relação do uso para a simples sobrevivência, pois em tempos mais remotos o vínculo permanecia após a morte, de sorte que o espaço sepulcral também era sagrado, e onde a família se fixava ali também era o local onde seriam sepultados os seus entes.

O uso antigo era enterrar os mortos não nos cemitérios ou à beira da estrada, mas no campo de cada família. Esta prática do mundo antigo achava-se confirmada numa lei de Sólon e em muitas passagens de Plutarco. Vê-se, em discurso de Demóstenes, cada família a enterrar, ainda em seu tempo, os seus mortos no seu campo; e quando se comprava domínio na Ática lá se encontrava sempre a sepultura dos antigos proprietários. Este mesmo costume, no que respeita à Itália, acha-se testemunhado na lei das Doze Tábuas, em textos de dois jurisconsultos e ainda nesta frase de Sículo Flaco: "Havia antigamente duas formas de colocar o túmulo: uns colocavam-no no limite do campo, outros no meio."3

A noção moderna de propriedade, tal como hoje a detemos, passa ainda pelo conteúdo do pater familias do direito romano, em que o pai de família recebia a terra para dela tirar o sustento do grupo, através do direito quiritário, regime pelo qual a propriedade só podia ser detida por cidadãos livres. Porém, ainda não se falava do poder que hoje é inerente ao direito de propriedade, qual seja o de disposição (domínio), visto que não se cogitava da idéia de propriedade individualizada, valendo considerar que mesmo o conceito de família era muito mais elástico do que na acepção pela qual hoje o tomamos.

Valcir Gassen nos dá uma pista de como pode ter surgido o direito de propriedade individualizado, atribuindo-lhe ao aparecimento do Estado, que passa a privilegiar juridicamente o indivíduo:

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Sendo a propriedade da terra coletiva, pertencendo ao grupo social em sua totalidade, os objetos que o homem fabrica para o seu uso pessoal começam a receber uma conotação de propriedade individual, privada. A relação que se estabelece entre o proprietário e tais utensílios particulares, bem como entre o grupo e a terra, é recheada por um vínculo místico muito forte, conferindo à propriedade a característica de algo sagrado.

Essa forma de propriedade coletiva da terra e a forma da propriedade privada móvel vai com o tempo transformar-se, principalmente quando da organização da comunidade política territorial em contrapartida à comunidade política do tipo gentílico que até então prevalecia.

Nasce o Estado, que inverte, ao privilegiar juridicamente o indivíduo, as relações existentes, ou seja, já não mais conta a coletividade em relação ao indivíduo, mas o inverso, o indivíduo singular agora é o centro referencial. Estabelece-se também a divisão entre a propriedade privada e a propriedade pública.4

Dessa origem histórica, ligeiramente aludida, é possível depreender que a propriedade privada não pode ter sua evolução ao longo da história entendida simplesmente como oriunda da utilidade material, pois que nasce de valores muito mais intrínsecos ao ser-humano, enquanto elemento racional dotado de emoção e apego aos bens por motivos outros que não simplesmente materiais.

Até se chegar ao conceito de propriedade como um direito a todos oponível, nos moldes como hoje o conhecemos, um longo caminho foi percorrido e suas características foram evoluindo, encontrando-se hodiernamente muito mais ligada ao seu valor material, o que também não se pode observar sem uma ponderação das variantes axiológicas e de tempo e espaço, como bem acentua José Reinaldo de Lima Lopes:

Quais as mudanças pelas quais passou a propriedade ao longo da história? Especialmente, considerada a tradição ocidental de estudo do direito desde o século XII, quais as diferenças observáveis? Uma primeira intuição pode levar qualquer um à idéia de que propriedade é uma categoria do espírito, uma categoria jurídica sempre igual a si mesma. Aí começam as armadilhas. Certamente uma distinção entre meu e teu pode ser universal. Mas a propriedade, como regime jurídico, tem formas muito distintas ao longo da história. Em cada sociedade (formação social) é possível perceber o que é objeto de apropriação individual ou coletiva. Se a apropriação for entendida como uso do mundo material para a manutenção da vida humana, certamente toda a história é um processo de apropriação. Isto, porém, é quase uma tautologia(...), pois toda a vida humana é material e, portanto, o regime jurídico da propriedade é o regime da...

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