A Proposta Revisionista da Teoria Geral do Direito do Trabalho: A Função Concorrencial das Relações Trabalhistas

AutorHumberto Lima de Lucena Filho
Ocupação do AutorDoutor em Ciências Jurídicas (Universidade Federal da Paraíba)
Páginas199-236

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As formas de se encarar um mesmo fato social podem ter visões excludentes por ramos do Direito? A resposta a essa questão perpassa pelo questionamento do conceito, da validade e da unidade do sistema jurídico, enquanto ordenamento coeso e não antinômico. A juridicade não se encerra no puritanismo dogmático, antes considera a praxe interpretativa quanto a matérias que, aparentemente, não se tocam, mas estão vinculadas por essência.

Ainda que, funcionalmente, opte por tentativas de indução comportamental, o Direito não é dotado de aspecto deletério. A sua coerção sempre se revelou inapta para eliminar — em absoluto — realidades consideradas por ele como ilegítimas. Não é a existência de uma normatividade que, isoladamente, expurga do sistema jurídico o que se reputa por ilícito, tal qual não é a ausência de uma lei regulatória ou a opção por uma intepretação juridicamente limitada o elemento impeditivo das lesões que sucedem no plano real.

Mesmo diante da sua possível ineiciência, o Direito é dotado de funções especíicas. Dentre elas, está o reconhecimento da existência de fenômenos sociais e econômicos e a legitimação dos seus efeitos, de modo que o julgador não pode se furtar no oferecimento de soluções para os problemas concretos quando lhe são apresentados em nome do argumento de decidir quanto ao que está expressamente positivado.

Um Direito ativo pela clássica exegese dispensa qualquer esforço hermenêutico fornecido pelos métodos de interpretação jurídico-contemporâneos. Esse ceticismo quanto à normatividade não lhe subtrai a sua função de cognição jurídica e de reconhecimento do proliferado como código de conduta em áreas da vida humana. O Direito do Trabalho, ainda que diante do silêncio da doutrina antitruste, tem uma vertente concorrencial e a negação dessa função peculiar pelos órgãos regulatórios não retira a veracidade de tal constatação.

Desde 1919, com a constituição da OIT e, nas décadas seguintes, com as discussões, no âmbito da OMC já se debatia e reconhecia uma função concorrencial e de competitividade empresarial do Direito do Trabalho. Em via oposta, o mesmo não se repete em território brasileiro. A doutrina trabalhista sinaliza, timidamente, a indispensabilidade de

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maior atenção aos efeitos dos descumprimentos coletivos de direitos trabalhistas, na concorrência e na captação de consumidores, enquanto os autores do direito econômico e da concorrência optam por silenciar quanto ao assunto, em nome de uma resistência à função competitiva do Direito do Trabalho. O fruto desses dois posicionamentos adversariais é o MPT e o Poder Judiciário Trabalhista fazerem uso de uma estratégia que foge à mais básica racionalidade processual: a aplicação de uma tese prevista, no Enunciado n. 04/2007, da 1a

Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, que permite ao juiz do trabalho condenar de ofício um empregador réu pela prática de dumping social, sem que para isso haja a participação do CADE e a invocação dos dispositivos da Lei n. 12.529/2011.

A seção que se inicia objetiva a análise do dumping social sob a perspectiva da doutrina trabalhista, dos órgãos ministeriais e jurisdicionais afetos às matérias laborais para propor uma revisão teórica no direito do trabalho a im de contemplar a função concorrencial. Em nome de uma metodologia lógica e dedutiva, o primeiro tópico dedica-se a estudar os fundamentos conceituais do dumping social na doutrina trabalhista.

O segundo item empreende uma análise jurisprudencial trabalhista enfocando seu comportamento referente à apreciação de ações afetas ao tema, sobre a atuação do Parquet Laboral como órgão vanguardista e o modo como se tem erigido a responsabilização civil dos agentes pela Justiça do Trabalho.

Por último, pretende-se debruçar sobre um agente econômico que se destacou no setor da construção civil — a MRV Engenharia —, galgando posições de destaque entre as companhias mais bem-sucedidas e, simultaneamente, sendo noticiada como responsável por graves violações trabalhistas.

5.1. Dumping social e direito concorrencial do trabalho

A teoria geral do Direito do Trabalho foi construída à medida que esse ramo do Direito se consolidava e se emancipava dos fundamentos civilistas que o originaram. Uma teoria geral apresenta o conjunto de institutos e de princípios conformadores da lógica sistêmica, da estruturação normativa, e orienta, epistemologicamente, os conceitos e as formas de manifestação das categorias que lhe dão sustentação.

Dentre os objetos de estudo da teoria geral do Direito do Trabalho, situa-se a análise de sua validade, de suas estruturas e de suas funções. O estudo em tela coloca em diálogo dois ramos, aparentemente, não comunicantes (Direito do Trabalho e Direito da Concorrência). A justiicativa dialógica e ativa de um ramo sobre o outro, na perspectiva da legitimação do dumping social como modalidade de conduta anticompetitiva, atravessa pela existência de pontes interpretativas da teoria geral de ambos. A delimitação de estudo propõe-se a revisitar as estruturas paradigmáticas do Direito do Trabalho para localizás-la a serviço, dentro do universo de possibilidades e de aplicações, do Direito da Concorrência.

Sob o ângulo da validade, tanto o Direito do Trabalho quanto o da Concorrência observam os ditames da teoria geral do Direito, ao se estabelecerem como sistemas normativos que formulam uma pretensão à correção, que não são extremamente injustos e que são dotados de um mínimo de eicácia social ou de possibilidade de eicácia. São possuidores de princípios

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e de outros argumentos normativos úteis à aplicação do direito no objetivo de atingir a pretensão corretiva473.

O Direito da Concorrência tem, na função regulatória e mantenedora da estabilidade da ordem econômica concorrencial, a legitimidade para reprimir as infrações perpetradas pelos agentes privados. As suas regras se ancoram no impedimento de abusos do poder econômico e na proteção aos atores concorrentes e consumidores pela via indireta, sendo dotado de um sistema de atividade próprio.

O Direito do Trabalho preocupa-se com a integridade das relações empregatícias orientado por um olhar protetivo ao trabalhador. A Justiça do Trabalho tem se destacado pela sua celeridade, eiciência e atendimento aos propósitos para os quais foi criada, quais sejam, os de impedir a exploração desmedida do trabalhador e o enriquecimento ilícito do empregador diante da internalização das externalidades negativas474.

A estrutura do Direito do Trabalho brasileiro tem raízes na normatividade heterônoma como regra prevalecente e no modelo privado subordinado aos limites estabelecidos pelo legislador. A fonte formal primária não se constitui feito um direito eminentemente privado; é marcada por profundas intervenções estatais que mitigam o exercício da autonomia privada individual e coletiva. Mesmo veriicando uma estruturação, nos moldes da teoria kelseniana do Direito, por degraus, a principiologia jurídica trabalhista acrescenta o princípio da norma mais favorável como critério otimizador de efetividade teleológica e baliza hermenêutica solucionadora de conlitos entre fontes formais.

O ponto em comum entre a forma de produção e a estruturação legislativa do direito trabalhista e do direito da concorrência os posicionam, no mesmo patamar de um sistema normativo dinâmico — aquele cujas regras estão vinculadas pela forma como são produzidas475. A identiicação da similaridade de estruturas entre os ramos comentados ganha prestígio em face da lógica de formação de ambos sustentarem-se em comandos constitucionais e se desenvolverem no formato de uma espiral vertical, com uma proposta de correção dos abusos do direito (do exercício do poder potestativo patronal e do direito à eiciência na consecução da atividade empresarial). Além disso, relete a constatação de que a “(...) análise estrutural do direito como ordenamento normativo especíico, cuja especiicidade consiste, precisamente, não nos conteúdos normativos, mas no modo pelo qual as normas estão unidas umas às outras no sistema”476.

A transdisciplinaridade estrutural entre trabalho e concorrência é um dos argumentos centrais deste trabalho, porém, o ponto fulcral do estudo concerne à evidência do aspecto

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funcional do Direito do Trabalho. Há de se ter em mente que o Direito é um sistema normativo de controle e de regulação social, com métodos e princípios próprios e produção legislativa inalística. O sentido de existência de um sistema jurídico é a sua capacidade de êxito no controle e no reconhecimento de situações por ele previstas dentro de um parâmetro razoável de eicácia. Para que isso seja posto em prática, as funções clássicas do Direito restringem-se à faceta protetora e repressiva, onde a juridicidade tem por missão combater os atos ilícitos e proteger os lícitos. Bobbio apresenta, como terceira função promocional, a realização de comportamentos desejáveis operacionalizados pelo tríplice comando de tornar a ação necessária, fácil e vantajosa477. A adoção dos critérios de encorajamento e de desencorajamento pelo Direito com a aplicação de sanções e de incentivos (sanções positivas) atua como promotor de uma efetividade dos efeitos jurídicos, e é, nessa função de estímulo aos comportamentos positivos, por meio de promessas, que se pretende alterar a cultura punitiva de per si para um modelo de manutenção das boas ações.

O controle social positivo encerra um aspecto desprestigiado pelo Direito brasileiro, salvo raras exceções. No âmbito das funções tradicionais do Direito do Trabalho, nota-se que os objetivos de controle preocupam-se muito mais em punir os empregadores, em ampliar o conjunto de direitos subjetivos, em expandir o alcance dos...

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