O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras

AutorProf. Gilmar Mendes
CargoAdvogado Geral da União. Professor Adjunto da Universidade de Brasília - UnB. Doutor em Direito pela Universidade de Münster.
Páginas1-22

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1. Considerações preliminares

É possível que o vício de inconstitucionalidade substancial decorrente do excesso de poder legislativo constitua um dos mais tormentosos temas do controle de constitucionalidade hodierno. Cuida-se de aferir a compatibilidade da lei com os fins constitucionalmente previstos ou de constatar a observância do princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsprinzip), isto é, de se proceder à censura sobre a adequação (Geeignetheit) e a necessidade (Erforderlichkeit) do ato legislativo1.

O excesso de poder como manifestação de inconstitucionalidade configura afirmação da censura judicial no âmbito da discricionariedade legislativa ou, como assente na doutrina alemã, na esfera de liberdade de conformação do legislador (gesetzgeberische Gestaltungsfreiheit)2.

Como se vê, a inconstitucionalidade por excesso de poder legislativo introduz delicada questão relativa aos limites funcionais da jurisdição constitucional. Não se trata, propriamente, de sindicar os motivi interiori della volzione legislativa3. Também não se cuida de investigar, exclusivamente, a finalidade da lei, invadindo seara reservada ao Poder Legislativo. Isto envolveria o próprio mérito do ato legislativo4.

Na Alemanha, o Bundesverfassungsgericht assentou, em uma de suas primeiras decisões (23-10-1951), que a sua competência cingia-se à apreciação de legitimidade de uma norma, sendo-lhe defeso cogitar de sua conveniência (Zweckmässigkeit). Todavia, "a questão sobre a liberdade discricionária outorgada ao legislador, bem como sobre os limites dessa liberdade, é uma questão jurídica suscetível de aferição judicial"5. Page 2

O conceito de discricionariedade no âmbito da legislação traduz, a um só tempo, idéia de liberdade e de limitação. Reconhece-se ao legislador o poder de conformação dentro de limites estabelecidos pela Constituição. E, dentro desses limites, diferentes condutas podem ser consideradas legítimas6. Veda-se, porém, o excesso de poder, em qualquer de suas formas (Verbot der Ermessensmissbrauchs; Verbot der Ermessensüberschreitung). Por outro lado, o poder discricionário de legislar contempla, igualmente, o dever de legislar. A omissão legislativa (Ermessensunterschreitung; der Ermessensmangel) parece equiparável, nesse passo, ao excesso de poder legislativo7.

A doutrina identifica como típica manifestação do excesso de poder legislativo a violação ao princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso (Verhältnismässigkeitsprinzip; Übermassverbot), que se revela mediante contraditoriedade, incongruência, e irrazoabilidade ou inadequação entre meios e fins8. No Direito Constitucional alemão, outorga-se ao princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeit) ou ao princípio da proibição de excesso (Übermassverbot) qualidade de norma constitucional não-escrita, derivada do Estado de Direito9.

A utilização do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso no Direito constitucional envolve, como observado, a apreciação da necessidade (Erforderlichkeit) e adequação (Geeignetheit) da providência legislativa.

Assim, em decisão proferida em março de 1971, o Bundesverfassungsgericht assentou que o princípio do Estado de Direito proíbe leis restritivas inadequadas à consecução de seus fins10, acrescentando que "uma providência legislativa não deve ser já considerada inconstitucional por basear-se em um erro de prognóstico" - BVerfGE, 25:1(12).

O Tribunal Constitucional explicitou, posteriormente, que:

"os meios utilizados pelo legislador devem ser adequados e necessários à consecução dos fins visados. O meio é adequado se, com a sua utilização, o evento pretendido pode ser alcançado; é necessário se o legislador não dispõe de outro meio eficaz, menos restritivo aos direitos fundamentais"11.

A aferição da constitucionalidade da lei em face do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso contempla os próprios limites do poder de conformação outorgado ao legislador. É o que se constata em decisão do Bundesverfassungsgericht, na qual, após discutir aspectos relativos à eficácia e adequação de medidas econômicas consagradas em ato Page 3 legislativo, concluiu-se que o legislador não havia ultrapassado os limites da discricionariedade que lhe fora outorgada12.

O Tribunal reconhece que o estabelecimento de objetivos e a definição dos meios adequados pressupõem uma decisão de índole política, econômica, social, ou político-jurídica13. Esse juízo inerente à atividade política parece ter determinado uma postura cautelosa do Tribunal no exame relativo à adequação das medidas legislativas14. A inconstitucionalidade de uma providência legal por objetiva desconformidade ou inadequação aos fins (Zwecktauglichkeit) somente pode ser constatada em casos raros e especiais (gelagert) (Bei Anwendung dieser in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts entwickelten Grundsätze wird die Verfassungswidrigkeit einer gesetzlichen Massnahme aus dem Gesichtspunkt der objektiven Zweckuntauglichkeit nur selten und in ganz besonders gelagerten Fällen festgestellt werden können)15.

Embora reflita a delicadeza da aplicação desse princípio no juízo de constitucionalidade, tal orientação não parece traduzir uma atitude demissionária quanto ao controle da adequação das medidas legislativas aos fins constitucionalmente perseguidos.

Uma lei será inconstitucional, por infringente ao princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso, diz o Bundesverfassungsgericht, "se se puder constatar, inequivocamente, a existência de outras medidas menos lesivas"16.

No Direito português, o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, também conhecido como princípio da proibição de excesso (Übermassverbot), foi erigido à dignidade de princípio constitucional17, consagrando-se, no art. 18, 2, do Texto Magno, que "a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".

O princípio da proibição de excesso, tal como concebido pelo legislador português, afirma Canotilho, "constitui um limite constitucional à liberdade de conformação do legislador"18.

Portanto, a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade.

Essa orientação, que permitiu converter o princípio da reserva legal (Gesetzesvorbehalt) no princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt des verhältnismässigen Gesetzes)19, pressupõe não só a legitimidade dos meios Page 4 utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para consecução dos objetivos pretendidos (Geeignetheit) e a necessidade de sua utilização (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit)20.

O subprincípio da adequação (Geeignetheit) exige que as medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos. O subprincípio da necessidade (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos21.

Em outros termos, o meio não será necessário se o objetivo almejado puder ser alcançado com a adoção de medida que se revele a um só tempo adequada e menos onerosa22. Ressalte-se que, na prática, adequação e necessidade não têm o mesmo peso ou relevância no juízo de ponderação. Assim, apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o que é necessário não pode ser inadequado23. Pieroth e Schlink ressaltam que a prova da necessidade tem maior relevância do que o teste da adequação. Positivo o teste da necessidade, não há de ser negativo o teste da adequação. Por outro lado, se o teste quanto à necessidade revelar-se negativo, o resultado positivo do teste de adequação não mais poderá afetar o resultado definitivo ou final.

Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade em sentido estrito)24. É possível que a própria ordem constitucional forneça um indicador sobre os critérios de avaliação ou de ponderação que devem ser adotados. Pieroth e Schlink advertem, porém, que, nem sempre, a doutrina e a jurisprudência se contentam com essas indicações fornecidas pela Lei Fundamental, incorrendo no risco ou na tentação de substituir a decisão legislativa pela avaliação subjetiva do juiz25.

Tendo em vista esses riscos, procura-se solver a questão com base nos outros elementos do princípio da proporcionalidade, enfatizando-se, especialmente, o significado do subprincípio da necessidade. A proporcionalidade em sentido estrito assumiria, assim, o papel de um "controle de sintonia fina" (Stimmigkeitskontrolle), indicando a justeza da solução encontrada ou a necessidade de sua revisão26.

2. A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

É interessante notar que a primeira referência de algum significado ao princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - tanto quanto é possível identificar - está intimamente relacionada com a proteção ao direito de propriedade. No RE no 18.331, da relatoria do eminente Ministro Orozimbo Nonato, deixou-se assente, verbis: Page 5

"O poder de taxar não pode chegar à...

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