Promoção de políticas públicas e implementação de direitos fundamentais sociais: reflexões sobre o papel do ministério público e do poder judiciário

AutorLuís Fabiano de Assis
CargoProcurador do Trabalho; bacharel, mestre e doutorando em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP)
Páginas175-193

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Introdução

As discussões sobre a implementação dos direitos sociais1 no

Brasil — especialmente a partir da promulgação da Constituição de 1988 — têm suscitado grande desapontamento e descrença2.

Os que se rendem ao conformismo costumam recorrer à justificativa de que as promessas descumpridas pelo constituinte seriam simples programas, realizáveis tão somente ao arbítrio dos legisladores e governantes. Mas essa notória letargia estatal também produz reações expressivas, influenciadas por um ideário bastante encorajador3.

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As origens dessas reações estão arraigadas nas transformações conceituais sofridas pelo Direito na chamada “pós-modernidade”, entre elas a propiciada por um movimento de revisão das proposições fundamentais do positivismo jurídico4.

Nesse cenário, a concepção “pós-positivista” emerge como uma construção ainda inacabada, baseada em teorizações sobre os direitos fundamentais e na renovação da hermenêutica constitucional, cujo enfoque contemporâneo — reportando-se a cânones interpretativos específicos5 e à reaproximação entre Direito e Ética — salienta as relações jurígenas entre valores, princípios e regras6.

Além disso, as influências desse ideário vinculado ao neoconstitucionalismo têm contribuído para a reformulação da concepção de Estado, inclusive a de Estado-Juiz, em sua função de promover os direitos fundamentais sociais.

A própria ideia de separação de poderes tem sido revisitada para permitir, com uma tônica claramente promocional, a rediscussão dos meios de efetivação dos Direitos Humanos de segunda geração.

Com efeito, ao passo que se polemizam os limites normativos dos programas enunciados pela Constituição7, discutem-se também

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as fronteiras da judicialização da política8 no que respeita à implementação dos direitos sociais, tarefa esta que exige o planejamento e a execução de políticas públicas específicas.

Como resultado, as reiteradas constatações de omissões e desvios do poder público no campo das chamadas prestações estatais positivas têm levado ao crescimento das iniciativas de provocação do Judiciário para proceder ao controle dos demais Poderes.

O Ministério Público, em razão de sua vocação constitucional9, tem sido o protagonista dessas ações, notadamente as de ordem transindividual. Por outro lado, a refletir a receptividade dos juízes às ações com aquele escopo, pode-se entrever um incremento do ativismo judicial10.

Mas essa face promocional da judicialização da política enfrenta uma série de dificuldades, que envolvem desde as consistentes críticas apresentadas por vozes mais conservadoras até a necessidade de enfrentar óbices fáticos à materialização de um idealizado “conteúdo essencial” dos direitos sociais.

Após essa breve pré-compreensão, indaga-se, para uma breve reflexão: que são políticas públicas e quais são os fundamentos de sua judicialização quando se trata da implementação de direitos sociais?

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Como poderiam ser definidos e articulados os conceitos de mínimo existencial e de reserva do possível, recorrentemente utilizados nos debates sobre o tema? Que diretrizes poderiam orientar a atuação do Ministério Público e as decisões do Judiciário em relação à matéria?11

1. Conceito de políticas públicas

Num sentido mais geral, a ideia de políticas públicas é conexa à de programas de ação governamental em que se coordenam instrumentos estatais voltados à “realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados”12. Per se, uma política pública não tem como qualidade o caráter normativo, sendo este, a rigor, um predicado de alguns de seus elementos constitutivos.

De fato, como atividade que se traduz em um conjunto organizado de normas, decisões e atos unificados por uma finalidade, a política pública reúne fatores que, tomados isoladamente, são de natureza heterogênea.

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Consequentemente, cada um de seus elementos — conforme as peculiaridades dos regimes jurídicos que lhes forem aplicáveis13 — poderá demandar o manejo de instrumentos distintos de controle.

A finalidade das políticas públicas é variável. Para citar apenas duas hipóteses que se afiguram polares, há políticas públicas que podem privilegiar objetivos governamentais14, ao passo que outras se dirigem basicamente à efetivação de direitos sociais, conforme metas programáticas estabelecidas na Constituição15.

Ademais, sem a necessidade de recorrer à casuística, pode-se afirmar, para fins analíticos, que seriam inconstitucionais quaisquer políticas públicas que, pelos resultados almejados, pudessem violar direitos fundamentais ou que desrespeitassem normas constitucionais em geral16.

Essas inconstitucionalidades — que podem macular a política pública total ou parcialmente17 — seriam igualmente identificáveis nas omissões estatais, seja em razão do não planejamento, seja em virtude da não execução de programas constitucionalmente exigíveis, como é o caso das prestações positivas que visem à efetivação dos direitos sociais.

2. Justiciabilidade de direitos sociais e estado social de direito

Mesmo diante de inconstitucionalidades na ação ou na omissão do poder público, há muitas resistências à justiciabilidade de políticas

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públicas voltadas à promoção dos direitos sociais. Uma das objeções mais antigas supõe que as normas programáticas sobre esses direitos seriam destinadas apenas aos governantes, cujos agentes possuiriam, com exclusividade, a faculdade de definir a oportunidade, a conveniência e os instrumentos das políticas com tais escopos18.

Os defensores dessa tese admitem que os juízes se manifestem apenas sobre os direitos fundamentais individuais, correspondentes às liberdades negativas; e negam, a priori, a justiciabilidade dos direitos sociais, relacionados às liberdades positivas e concretizáveis por prestações estatais19.

Os fundamentos dessas alegadas limitações costumam radicar na clássica ideia de separação de poderes, na teoria democrática e no caráter contramajoritário das decisões judiciais20. Em linhas gerais, aduz-se que, por não serem eleitos pelo voto do povo, os juízes não poderiam ser considerados legítimos representantes da sociedade, o que afastaria de sua competência o exame dos atos políticos e governamentais em geral, baseados, como é sabido, na pressuposta adesão dos representados21.

Note-se que esses argumentos se reportam à época do surgimento do Estado liberal, em que preponderava o intuito de neutralizar a atuação do Judiciário ante os demais poderes22. É bem diverso, entretanto, o ideário contemporâneo do Estado Social de Direito23,

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em que a jurisdição — concebida como mecanismo de expressão efetiva do poder estatal — há de se alinhar a objetivos constitucionalmente estabelecidos.

Com efeito, a inafastabilidade do controle judicial traduziria um dos importantes mecanismos de harmonização entre a atuação dos demais Poderes e os escopos do Estado, de sorte que a justiciabilidade dos direitos sociais não resultaria de mera possibilidade jurídica, mas da necessidade política do exame judicial de eventuais desvios ou omissões estatais no tocante à implementação daquelas prerrogativas.

A suposta falta de legitimidade democrática dos juízes — cujas decisões sobre a matéria, notadamente no campo transindividual, são tomadas sem a participação direta dos cidadãos afetados — não constituiria um óbice, por si só, à judicialização dessas questões.

É que referido “mal” também existe nas atividades dos demais Poderes, apesar da presunção em contrário engendrada pela ideia de democracia representativa. De fato, o problema ainda não foi bem resolvido nem sequer nos âmbitos do Legislativo e do Executivo, em cujas deliberações não se visualiza uma participação social efetiva, ainda que indireta.

À vista dessas dificuldades e como forma de contorná-las, os debates contemporâneos da teoria democrática têm enfatizado tanto a necessidade de aprimorar mecanismos de aferição da accountability dos agentes políticos, quanto a indispensabilidade de práticas relacionadas à ideia de democracia deliberativa24, que poderiam ser aplicadas, mutatis mutandis, à própria função jurisdicional.

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Essas abordagens, mesmo que não resolvam totalmente o problema25, ressaltam a superficialidade de argumentos que, para contrariar a hipótese de justiciabilidade dos direitos sociais, recorrem apenas à clássica ideia de separação de poderes ou à perspectiva do direito de voto, fundada na presunção simplista de representatividade vindicada pelos poderes estatais estruturados pelo sistema eleitoral26.

3. Justiciabilidade de direitos sociais: o mínimo existencial, a reserva do possível e a regra da proporcionalidade

Outro obstáculo apontado pelos que advogam contrariamente à justiciabilidade de direitos sociais residiria no fato de que os juízes — cuja formação é fundamentalmente jurídica — não se vinculam à lógica da disponibilidade de meios, mas à restrita aferição da exigibilidade de direitos.

Segundo essa linha de pensamento, mesmo que se admitisse a participação dos juízes na seleção política de prioridades orçamentárias, os limites da cognição judicial — restrita às fronteiras dos fatos alegados e da própria demanda27 — seriam incontornáveis. Desse modo, esses fatores tornariam inviável a identificação da concorrência daquelas prioridades num mesmo contexto orçamentário globalmente considerado28.

Por outro lado, as linhas teóricas que admitem a justiciabilidade dos direitos sociais, na tentativa de contornar as dificuldades apontadas

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supra, costumam articular — sem uniformidade, vale destacar — as ideias de “mínimo existencial” e de...

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