O Projeto de Norma da Corte de Justiça do Mercosul e o (DES )Amparo aos Direitos Humanos

AutorJuliane Caravieri Martins Gamba
CargoDoutoranda em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (USP)
Páginas85-114

Page 85

“Para além de suas diferentes atitudes — otimistas ou pessimistas, realistas ou idealistas — os juristas precisam assumir, portanto, as responsabilidades ligadas à sua profissão. E, se é verdade que a curto prazo não podemos nos iludir, é também verdade que a história nos ensina que os direitos não caem do céu, e um sistema de garantias efetivas não nasce numa prancheta, não se constrói em poucos anos, nem tampouco em algumas décadas. Assim foi com o Estado de direito e com nossas democracias ainda frágeis, que só se afirmam à custa de longas batalhas no campo das idéias e de lutas sangrentas. Seria irracional pensar que o mesmo não acontecerá com o direito internacional e não nos empenharmos na parte que nos cabe.”

Luigi Ferrajoli

Page 87

1. Introdução

Após a Segunda Guerra Mundial, houve a consolidação na ordem internacional de blocos econômicos de integração regional que objetivaram o fortalecimento econômico e político dos Estados-partes no intuito de obter maior competitividade no comércio mundial. Na América Latina, apesar de haver outras propostas de integração regional, destacou-se o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) criado, em 1991, mediante a assinatura do Tratado de Assunção entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.

O merCosul assumiu mais uma feição de aliança comercial com vistas a dinamizar a economia regional e, inicialmente, não houve preocupação com questões sociais, culturais, identitárias e nem com a tutela jurídica dos direitos da pessoa humana nos tratados que fundamentaram a criação e a institucionalização do bloco. Entretanto, na atualidade, em face da existência de normas internacionais de proteção aos direitos humanos, de cunho global e regional, e de ordenamentos constitucionais que objetivam a valorização da dignidade da pessoa humana, é necessário criar controles jurisdicionais por intermédio de tribunais supranacionais no âmbito de processos de integração regional.

Em dezembro de 2010, foi aprovado pelo Parlamento do MERCOSUL (PARLASUL) o Projeto de Norma “MERCOSUR/PM/PN 02/2010” para a criação da Corte de Justiça — em substituição ao Protocolo de Olivos (2002) utilizado atualmente na solução de controvérsias — como órgão jurisdicional, judicial e independente para garantir a aplicação e a interpretação uniforme das normas no bloco.

Este projeto possui uma parte introdutória que contém “Exposición de Motivos”, “Oportunidad”, “De la Creación y Organización de la Corte de Justicia”, “De las Competencias de la Corte de Justicia”, “De las Sentenças y Decisiones”, “De la Jurisdicción” e “Conclusión” que justifica a proposta de criação da Corte de Justiça no MERCOSUL. Posteriormente, há cinco capítulos que estabelecem a estrutura da Corte, o perfil dos juízes, a jurisdição, as competências, as ações judiciais cabíveis dentre outros institutos jurídicos, conforme a estrutura a seguir: capítulo i — “de la creación Y organiZación de la corte de Justicia” subdivido em Sección I — De la Corte de Justicia; Sección II — Integración e Independencia; Sección III — Requisitos, elección, duración en el cargo, remoción y funcionamento; Sección IV — Inmunidades e Estatuto y reglamento interno; Sección V — El Secretario y el personal e Sección VI — Informes y presupuesto; capítulo i-a — “de las competencias de la corte de Justicia” subdivido em Sección I — De la acción de nulidad; Sección II — De la acción por omisión; Sección III — De la acción de incumplimiento; Sección IV — De la cuestión prejudicial; Sección V — De la función arbitral; e Sección VI — De la jurisdicción laboral; capítulo ii — “de las sentencias Y decisiones”; capítulo iii — “de la Jurisdicción”; capítulo iv — “disposiones generales”; capítulo vi — “disposiones transitorias” e os Fundamentos que finalizam a proposta do projeto.

Na Exposição de Motivos do projeto, há a justificação das causas ensejadoras da proposta e das perspectivas para a constituição da Corte de Justiça no MERCOSUL, destacando-se as seguintes assertivas:

Page 88

El presente proyecto de Protocolo Constitutivo es el instrumento que da origen a la Corte de Justicia del MERCOSUR […] como órgano jurisdiccional, judicial, independiente, cuya función esencial será garantizar la interpretación y aplicación uniformes del derecho del MERCOSUR, afianzando la consolidación jurídica e institucional del proceso de integración.

Esta propuesta se basa en la experiencia desarrollada en la aplicación práctica del Protocolo de Brasilia y del Protocolo de Olivos, así como también de los regímenes que pueden encontrarse en el Derecho comunitario comparado (Comunidades Europeas, Comunidad Andina y Sistema de la Integración Centroamericana, entre otros). […]

La doctrina y la práctica ratifican que la existencia de una Corte de Justicia resulta imprescindible a los fines de consolidar el mecanismo jurídico interno del bloque, lo cual resulta necesario para dotar de seguridad y certeza jurídicas al proceso de integración, y con ello garantizar la aplicación de los derechos que se atribuyen a los Estados Partes, a los órganos regionales y a las personas físicas y jurídicas. Esta conclusión no es ajena al MERCOSUR, sino más bien resume su esencia.

En definitiva, la creación de la Corte de Justicia salvaguardará el Estado de Derecho en el MERCOSUR, elevando su nivel de desarrollo institucional y jurídico, y colmando con ello la ausencia de una instancia jurisdiccional comunitaria. (MERCOSUL, 2011d, p. 01-02 e p. 06-07.)

Então, o Projeto de Norma da Corte de Justiça do MERCOSUL propõe vários institutos jurídicos, órgãos e instituições a serem construídas, criadas e instrumentalizadas no bloco para o avanço da consolidação jurídica e institucional do processo de integração mercosulista.

Ante essa gama variada de questões que poderiam ser analisadas, o presente artigo — para fins didáticos e de método — realizou o estudo do texto legal deste projeto com ênfase nos seguintes aspectos específicos: descrição e análise dos instrumentos jurídico-processuais que poderão ser impetrados por pessoas físicas e jurídicas perante esse órgão jurisdicional, tais como: ações de nulidade; ações por omissão; ações de descumprimento ou violação; ações por questão predominante/prejudicial; e, ainda, análise dos limites e deficiências da competência em razão da matéria (ratione materiae) desta futura Corte, sobretudo em relação às lides trabalhistas, penais e aos direitos humanos de um modo geral.

Apesar de o merCosul ter sido constituído para promover tão somente acordos de cunho comercial e, talvez, aprofundar uma possível integração econômica, na atualidade, se mostra imprescindível a necessidade de elevar o nível institucional do bloco mediante a criação de instituições de caráter supranacional — o primeiro passo já foi dado com a criação do PARLASUL — para que se consolide um Estado Democrático de Direito com o resguardo da democracia e da tutela dos direitos das pessoas e dos povos mercosulistas, havendo o estreitamento do vínculo de solidariedade e de cooperação entre os Estados integrantes do bloco. Esses objetivos também estão presentes nos “Fundamentos” do projeto de norma, in verbis:

Modernamente no puede negarse que la consolidación del Estado de Derecho, la salvaguarda de los derechos fundamentales de las personas y la garantía de los principios democráticos exigen,

Page 89

como uno de sus elementos esenciales, la creación de instituciones sólidas, entre las cuales se destacan, por su función, los tribunales de justicia.

En precisamente en este marco en el que se inscribe el presente proyecto de norma, al materializar una propuesta de creación de una Corte de Justicia para nuestro proceso de integración. El proyecto es tributario, sin dudas, de varios actos e iniciativas adoptadas en el ámbito de este Parlamento tendientes al mismo objetivo.

En efecto, en primer lugar cabe señalar que este Parlamento aprobó en su XVª Sesión (28/11/08), por voto unánime de los Parlamentarios, la Declaración nº 23/08, “Sobre el 6º Encuentro de Cortes Supremas”, encuentro que tuvo lugar en Brasilia, el 21/11/08. […] la declaración destaca “que resulta de fundamental importancia para el desarrollo del MERCOSUR y para nuestra integración definitiva la implantación de un único Superior Tribunal de Justicia del MERCOSUR que dirima conflictos e interprete el derecho comunitario, sin perjuicio de la lógica autonomía de los Órganos Judiciales de los Estados Parte” y “que la única manera de posibilitar a los habitantes de nuestro MERCOSUR un mejor nivel o calidad de vida, será cimentándolo sobre la base de la seguridad jurídica, que deberá ser única y no podrá estar sujeta a las distintas inter-pretaciones de los Órganos judiciales de cada Estado Parte”. (MERCOSUL, 2011d, p. 27-28.)

Portanto, é necessária a implementação de controles jurisdicionais do Estado, por inter-médio de tribunais supranacionais, para a garantia da democracia e do respeito aos direitos da pessoa humana no âmbito dos processos de integração regional, principalmente no caso do MERCOSUL que envolve povos com diferentes identidades culturais, sociais e históricas.

Assim, é imperioso o estudo deste Projeto de Norma da Corte de Justiça do MERCOSUL, ainda em fase preliminar de votação no PARLASUL, no intuito de contribuir para o aperfeiçoamento das discussões sobre essa temática que, certamente, irão se aprofundar nos próximos anos em face da necessidade de maior institucionalização do bloco.

2. MERCOSUL, Integração Regional e Direitos Humanos

Na doutrina constitucionalista contemporânea, tanto nacional quanto estrangeira, há a discussão se “Direitos do Homem”, “Direitos Humanos” e “Direitos Fundamentais” seriam...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT