O Projeto de Lei n. 4.330/2004 e a agenda nacional do trabalho decente

AutorEneida Melo Correia de Araújo
CargoDoutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 6a Região. Professora Adjunta da Faculdade de Direito do Recife/UFPE
Páginas31-43

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1. Introdução

Fiel à concepção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no sentido de preservar e ampliar a proteção social, o governo brasileiro, em maio de 2006, declarou que efetivaria em seu território o Trabalho decente, lançando a sua Agenda Nacional.

O Trabalho decente expressa a convergência dos quatro objetivos estratégicos da OIT: o respeito aos direitos no trabalho, a promoção do emprego, a extensão da proteção social e o fortalecimento do diálogo social.

Adotando a doutrina da OIT, o Brasil concordou que era pressuposto para superar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais, garantir a governabilidade democrática e o desenvolvimento econômico sustentável tornar realidade o trabalho decente.

E mais: o governo do Brasil comprometeu-se com a proposição da OIT de que é indispensável a promoção do trabalho decente para todas as pessoas, à luz da Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho, de 1998, e da Declaração sobre Justiça Social para uma Globalização Equitativa, datada de 2008.

Esses documentos contêm uma síntese da missão histórica da OIT, coerente com o ideário de que é imperioso conceder oportunidades para homens e mulheres obterem trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana.

Diante desse pacto internacional histórico, e considerando os fundamentos traçados na Carta Republicana e os objetivos de?nidos pelo governo brasileiro em sua Agenda de Trabalho decente, traz perplexidade e inquietação o Projeto de Lei n. 4.330/2004. É que ele se revela como uma série de disposições que, desestruturando o contrato de trabalho, afronta os princípios basilares do Direito do Trabalho e inúmeras normas e compromissos internacionais.

2. Contrato de trabalho

Seguindo o pensamento de Roberto Lyra, o direito deve ser entendido como extrato sociológico que serve para acumular e demonstrar as conquistas históricas do homem contra o privilégio e a tirania. A superação dos obstáculos decorre de lutas a partir das quais os detentores do poder necessitam fazer concessões aos que buscam um espaço na sociedade para a realização de seus direitos1.

E a realidade social demonstra que no campo das relações de produção o sistema jurídico deve criar regras de proteção ao trabalho e contra o desemprego, de segurança e medicina do trabalho, de meio ambiente, de seguridade social, de migração, de diálogo social, inserindo-as no contrato de trabalho. Essa construção histórica tem em consideração o princípio do não retrocesso social, na medida em que o Direito do Trabalho pretende a extensão da proteção social.

Sendo assim, o direito ao trabalho, à justa e equitativa remuneração, à proteção contra o desemprego, à segurança e à liberdade diz respeito à dignidade da pessoa humana. Busca-se a concretização dos direitos sociais e, ainda, dos direitos de terceira geração, que se expressam na solidariedade, na paz, no respeito mútuo, na integridade do meio ambiente. Esses pressupostos são considerados na legitimação do vínculo de emprego, nele ingressando, para garantir-lhe justiça. Justiça no sentido de opção ética que atende à maioria da humanidade, recorrendo ao pensamento de Roberto Aguiar. Para o autor a Justiça “... seria uma ideia que traduziria a possibilidade de aceleração histórica no sentido do melhor, do mais humano, da libertação”2.

O Direito do Trabalho, portanto, diante da desigualdade entre empregado e empregador, constrói mecanismos que permitem ao trabalhador alcançar a cidadania.

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O contrato de trabalho se plasma neste quadro de forte e necessário intervencionismo estatal. Trata-se de uma das modalidades mais abrangentes de prestação de serviços, sobretudo em face da tendência a assumir uma natureza proletária nas relações de produção, bem como da supremacia política do capitalismo.

Explica-se, portanto, porque a subordinação jurídica é o dado de maior relevância para a caracterização desse negócio jurídico. Ele se revela — no plano da subordinação subjetiva — mediante uma posição de dependência em que o empregado é colocado na relação de emprego, e que o sujeita à obediência às deter-minações do empregador. Corresponde a uma posição de sujeição típica daquele que trabalha desprovido de autonomia e independência na execução das tarefas, impondo a observância do poder diretivo especí?co do empresário. Ademais, também demonstra a participação integrativa do trabalhador na atividade empresarial, como realça Alice Monteiro de Barros, ao aludir à subordinação objetiva3.

Atenta à essência da relação de emprego, à dependência econômica, social e, sobretudo, jurídica do trabalhador, a legislação dos povos civilizados contém regras que protegem o empregado na formação, desenvolvimento e ruptura do contrato de trabalho.

O direito positivo brasileiro, ao regular as relações de trabalho, consagra o princípio da liberdade de contratar, absorvendo os valores expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração de Filadél?a e na Constituição da OIT, sendo claro o objetivo de resgate da justiça contratual.

Precisamente dentro desses parâmetros, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no art. 444, dispõe que os sujeitos, no contrato de trabalho, podem estabelecer cláusulas de forma livre, impondo, todavia, a observância das regras de proteção ao trabalho: as decorrentes da lei, dos acordos e das convenções coletivas de trabalho, e aquelas fruto das decisões das autoridades administrativas.

Esta perspectiva da liberdade contratual tem em consideração a capacidade de propiciar ao ser humano a manutenção de sua dignidade e cidadania. Assegura o reconhecimento da igualdade de todos os trabalhadores, sem distinção de raça, gênero, concepção política, ?losó?ca, entre outros aspectos não discriminatórios. Também permite aos contratantes uma atuação de razoável equilíbrio, em atenção ao intervencionismo estatal que é suporte de validade do vínculo trabalhista.

Desta forma, ao surgir um modelo de contrato de trabalho distanciado de sua origem bilateral, dando ensejo à celebração de dois tipos de relação trabalhista, direcionados ambos à pessoa de um mesmo trabalhador, uma séria perplexidade abateu-se sobre o mundo jurídico. Era a terceirização de serviços que ingressava no mundo do trabalho assalariado.

3. Terceirização de serviços

A importância social do trabalho e a necessidade de sobre ele ser dirigida a proteção do poder público acham-se adequadamente explicitadas por Eugen Ehrlich. É que, conforme realça o autor, o sistema jurídico deveria conferir ao trabalho igual proteção que é atribuída à propriedade4.

A terceirização de serviços é gerada segundo um modelo de desapego à concepção da importância fundamental do trabalho. Ela se plasma em uma fase na qual vários fatores interferem na reorganização da estrutura das empresas. Pode-se mencionar: a inovação tecnológica, a pressão dos grupos econômico-?nanceiros mais ligados ao exterior, muitas

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vezes divorciados dos interesses da sociedade, políticas de austeridade imprimidas pelas autoridades monetárias internacionais com ênfase à restrição das taxas de crescimento.

Essa dinâmica da economia mundial, surgida a partir da década de 1970, traz, no campo das relações de trabalho, em vários países, o aumento do desemprego e a longa duração desse estado, a elevação das taxas de inatividade, maior número de contratos de trabalhadores em regime de tempo parcial e de relações desprovidas de registro, sem proteção da seguridade social, como demarcado por Denis Maracci Gimenez5.

O paradigma que será utilizado para as relações de trabalho advém, em suma, de um momento que se convencionou denominar de economia global, a qual ingressa nos territórios, utilizando todos os ?uxos de comunicação possíveis, impondo seus valores e práticas, e desarticulando as bases estruturais da economia e do mercado de trabalho, segundo Everaldo Gaspar6.

Como consequência dessa perspectiva, a terceirização de serviços é articulada no bojo da ciência da Administração de empresa, expressando a descentralização de atividades antes afetas a um determinado empreendimento empresarial. É um processo de desconcentração produtiva.

Na área da Administração de empresa, tal estratégia econômica, também conhecida pelo nome de “focalização”, pretende conferir ao empreendimento maior rendimento, melhores resultados, agilidade, simplicidade e competitividade no mercado.

Do ponto de vista da administração de negócios, o recurso a esse mecanismo — direcionado a obter maiores lucros — prega a manutenção na empresa de um pessoal ?xo em número razoável, como proposta de economia de custos diretos e indiretos decorrentes de contratação, treinamento, encargos sociais, rescisão de contratos de trabalho.

A desconcentração produtiva modi?ca a estrutura de organização tradicional da empresa, na qual estava encerrado todo o conjunto de atividades essenciais e acessórias. Com a terceirização de serviços, o empreendimento econômico reparte-se, dando ensejo a que uma empresa desloque para outras empresas as tarefas que não são essenciais ao seu objetivo.

Nesse processo de transferência, forma-se uma parceria, na medida em que a contratante, aquela que remove suas atividades, passa a dedicar-se aos objetivos fundamentais ou “atividade-?m”.

A focalização cria uma relação jurídica no mundo do trabalho de contorno trilateral: uma empresa que celebra um contrato com outra empresa, a qual se compromete a executar as atividades que a primeira empresa não pretende desenvolver.

A empresa, denominada prestadora de serviços, tem seu quadro de pessoal próprio, e o trabalhador põe sua força produtiva à disposição de outra empresa, que não é sua empregadora: a tomadora de serviços. Não obstante a...

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