O projeto de lei de falências e a realidade brasileira

AutorJosé Anchieta da Silva
Páginas110-126

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I Preâmbulo

A título de reflexão preambular, acreditamos, sem qualquer novidade, que a prioridade que tardiamente se pretende dar no Congresso Nacional ao projeto de lei, objeto deste breve estudo, atende ao binômio da "oportunidade" somada à "necessidade" urgente de um novo estatuto legal, em matéria de falência ou de direito concursal. Esta necessidade e esta oportunidade têm assentamento múltiplo seja em face do anacronismo da lei vigente, seja em face do vazio da doutrina, seja ainda em face do vacilo permanente e nada uniforme da jurisprudência sobre falência, sobre concordata e sobre temas afins. .

Desnecessárias maiores perquirições, para demonstrar a extraordinária mudança daquele Brasil da metade do século XX, em relação ao Brasil em que se vive neste pórtico de século novo. Basta voltar os olhos pelo retrovisor para reconhecer as mudanças profundas ocorridas em todos os campos da atividade humana, conferindo-se, em estudo comparativo, que não vivemos mais no Brasil de Getúlio Vargas. Não temos mais os Barões do Café. A contabilidade não mais é feita por guarda-livros. A atividade comercial, fundada no "ato de comércio", não mais pode ser bipartida entre os comerciantes de atacado e os comerciantes de varejo, ou, no jargão da época, venda a grosso e venda a retalho. A atividade comercial não mais aguarda pela chegada do carteiro para o acertamento do negócio.

Em escala internacional, não se vive mais sob a ameaça daquela guerra fria que antagonizava os dois mundos: o capitalista e o comunista. Não existe mais o muro de Berlim. O Brasil mudou. O mundo mudou.

O tradicional Direito Comercial Brasileiro que nasceu regulado, após os precários e pontuais regulamentos do império, pelo Código Comercial de Dom Pedro II, em 1850, tratando de locação de escravos, de navio a velas e de trapiches e trapichei-ros, veio sendo substituído por moderna legislação extravagante, de maneira tão vo-

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ATUALIDADES .

lumosa que recentemente, quando o Código Civil do Professor Miguel Reale dele revogou significativa parte, nada mais se praticou senão um simples réquiem, pro-movendo-lhe um "descanse em paz". De se reconhecer, evidentemente, em relação do Código Comercial, os seus preciosos serviços prestados ao Brasil e de se lhe reservar lugar de honra e de destaque nas estantes do fundo, como inegável obra de valor histórico inclusive.

Aquele Brasil rural recebeu investimentos industriais de relevo, principalmente no campo da indústria do aço, do automóvel, da energia elétrica e mais recentemente da comunicação. O desenvolvimento de uma indústria baseada na energia elétrica e no petróleo mudou inteiramente a face do Brasil, seguindo-se modificação estrutural em todo o comércio de dinheiro e de valores mobiliários. Afinal, além do mercado de frutas, de legumes e de verduras em geral, passamos a conviver com outros tipos de mercados complexos: o financeiro e o de capitais.

II A tendência legal nova: do individual ao coletivo

Em face de tantas modificações e em face de um crescimento demográfico também acentuado, no surgimento de um Brasil cada vez mais repleto de grandes conglomerados industriais e comerciais, ensejando o aparecimento de metrópoles e de regiões metropolitanas, a legislação passou a ocupar-se de interesses cada vez mais coletivos, afastando-se de uma dedicação, até então acentuada, que se verificava, sobretudo, na primeira metade do século XX, ao individuo isoladamente, em detrimento até de interesses coletivos ou comunitários. Os exemplos mais à mão de tais constatações aparecem na legislação ambiental, no Código do Consumidor e no novo Código Civil.

O legislador, seguindo tendência mundial, passou a preocupar-se coma qualidade de vida; com a proteção dos mananciais, do ambiente em que vive o ser humano; com as relações de consumo, ganhando terreno a dita proteção dos interesses chamados difusos.1

Foi neste cenário que passou a ser indispensável o considerar a figura dos agentes da produção, em substituição daquela figura do comerciante com os considerados "atos de comércio", reconhecendo-se ao empresário, pessoa natural e às sociedades empresárias a sua verdadeira importância no contexto social.

A nova ordem está a pôr e a ver as coisas a partir do coletivo para o individual.

Tornou-se, então, imperativo modificar o conceito das relações jurídicas existentes entre o dono do negócio (ou titular da atividade) e os seus parceiros, pára analisar-se, a partir de um escopo mais amplo, todo um conjunto de relações, com todos os seus reflexos econômicos e sociais, so-pesando-se os interesses da comunidade.

O mundo do indivíduo não desapareceu. O ser humano não deixou de ser uma esfera jurídica. A partir, entrementes, dessa visão nova reclamada pelo Direito, passou a ser fundamental o considerar as suas relações individuais relacionando-as com o contexto comunitário, maior e mais abrangente.2

III A Lei de Falências e a construção pretoriana

Com esta realidade nova, tornando-se superada a legislação individualista do Código Civil de Clóvis Beviláqua, diferentemente não se deu com a legislação fali-mentar. Aliás, o Decreto-lei 7.661, de 21.6.1945 - a atual Lei de Falências -

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tendo em vista o cosmopolitismo e a agilidade próprios do Direito Mercantil, só veio a resistir por mais de cinco décadas, em face da extraordinária contribuição dos tribunais, em trabalho diuturno de construção pretoriana, digno de nota, não obstante nada uniforme.

Deve-se a este trabalho de construção jurisprudencial, auxiliado por também volumoso esforço despendido por doutri-nadores, o retardamento de um trabalho legislativo mais fecundo e que se deu a partir do ano de 1993, resultando no Projeto que será objeto de nossas considerações.

Pessoalmente, e censurando os saudosistas por antecipação, não levo em consideração afirmativas tais como a de que a Lei atualmente em vigor estaria dentre nós consolidada. Este argumento é muito bom apenas para servir de biombo àqueles que têm medo do novo. Não é o nosso caso. A legislação anterior não se consolidou na medida em que os institutos nela regulados não atenderam à finalidade social alguma. A falência tal como ali regulada é apenas meio violento de cobrança, para surpreender comerciante incauto ou desprevenido. A concordata preventiva perdeu completamente sua utilidade, já que cinge-se a credores quirografarios, não conferindo ao concordatario prerrogativa alguma. Noutro ponto, a concordata suspensiva - ave cada vez mais rara que os ambientalistas do processo sequer perceberam o risco de sua extinção - não pode fazer milagre, exatamente porque não há como ressuscitar a ninguém, depois de assaltadas as suas vísceras úteis e de esquartejada a sua dignidade de agente de produção.3

Pelo sistema atual o que se presencia é o exercício de uma ação violenta, que dissipa o patrimônio do devedor; penaliza os credores que, com raríssimas exceções, conseguem receber os seus créditos, e ainda beneficia figuras que encontram no bojo do processo falimentar, mas longe do magistrado, ambiente próprio para se moverem na penumbra, entre o crime e a contravenção, utilizando-se da debilidade do sistema para atender a propósitos secundários, às vezes inconfessáveis. Trata-se de operações próprias de guabinas4 e de aves de rapina, realizadas nos desvãos da lei. E certo que Vitor Hugo, em sua consagrada obra Os Miseráveis, descreveria melhor algumas daquelas tramas.

O resultado disso é que se criou um cenário onde a lei não cumpre a sua função; da falência, como instrumento legal, restou apenas o estigma que crava nos seus alcançados, transformados em mortos vivos.

À parte discursos desprovidos de sinceridade, não há como não reconhecer que estávamos a necessitar de um ordenamento positivo novo para o nosso Direito Falimentar.

Não será difícil constatar que, em se tratando de falência pura, aquela correspondente à eliminação do agente da produção, em face da absoluta impossibilidade de resgatar-lhe a atividade, não pode e nem precisa ser um processo longo ou complexo. Afinal, a falência corresponde, basicamente, em arrecadar os bens ativos para resgatar, nos limites de suas forças e observadas todas as prelações legais, a massa passiva: os credores.

Quanto à concordata, no entanto, ou qualquer nome que se lhe dê, há necessidade de se estabelecer regras mais contemplativas; com interferência mesmo sobre os interesses em conflito. Foi nesta parte, que a legislação ainda vigente falhou e vem deixando órfãos todos os agentes da produção que, a despeito de viáveis os seus negócios, não encontram na lei o apoio capaz de propiciar-lhes o soerguimento, o salvamento da atividade e do negócio mui-

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to mais no interesse coletivo e social do que no individual.

IV A concordata preventiva e seu esgotado modelo atual: sua inutilidade

É nosso propósito analisar o projeto diante da realidade brasileira. Entretanto, antes de enfrentá-lo, parece-nos razoável peregrinar por sobre as ruínas que ficarão do sistema atual, para demonstrar inclusive que, no futuro, dele não restará nem saudade.

Analisando os inconvenientes do processo de concordata preventiva do modelo atual tradicional, pudemos nele verificar dez desvantagens que o desrecomendam e não, dez vantagens que...

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