Projeções da terceirização sobre a Previdência Social

AutorIgor Ajouz
Páginas177-186

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1. Introdução

A promulgação da Lei n. 13.429/2017 e o julgamento, no Plenário do Supremo Tribunal Federal, do Recurso Extraordinário n. 760.931, reacendem, no cenário nacional, uma série de controvérsias acerca da conveniência política e da adequação jurídica de relações contratuais que impliquem na terceirização do fornecimento de insumos e, em especial, da prestação de serviços na cadeia comercial.

O estudo ora iniciado tem como objeto, especificamente, o exame das projeções da terceirização sobre a previdência social, mapeando, em caráter prognóstico, os impactos do fenômeno em derredor do custeio e da manutenção de benefícios e serviços previdenciários, à luz das suas características normativas, econômicas e sociais.

O objetivo central da pesquisa aponta à checagem dos efeitos colaterais que a terceirização pode provocar sobre a captação de receitas destinadas à alimentação do sistema previdenciário, bem como suas repercussões sobre a proteção social dedicada aos trabalhadores e seus dependentes.

A hipótese cogitada sugere que a manobra comercial da terceirização pode implicar em redução quantitativa do volume de cotizações previdenciárias, vulnerando o equilíbrio financeiro e atuarial determinado pela Constituição Federal. Quanto aos segurados, especula-se que a terceirização possa acarretar um deficit de cobertura, frustrando o escopo protetivo da engrenagem previdenciária.

O desenvolvimento do trabalho colabora, em caráter científico, à estipulação de parâmetros jurídicos para uma reflexão crítica acerca da terceirização. Ao questionar os consectários previdenciários da terceirização, o estudo auxilia a verificação de compatibilidade do instituto, na forma como positivamente modelado, com a trama constitucional brasileira, designadamente quanto aos princípios regentes da seguridade social estampados na Carta de 1988.

O roteiro de exame se inicia pela análise teórica e normativa do instituto da terceirização, consideradas, em perspectiva, as inovações legislativas e as proclamações pretorianas mais recentes, com o aporte de revisão doutrinária conectada à temática sob exame. Em seguida, serão apreciadas, com abordagem especulativa, as principais repercussões da terceirização sobre o sistema integrado de arrecadação e provedoria previdenciária. As conclusões permitirão aferir se, no panorama jurídico-constitucional brasileiro, a terceirização deixa sob risco a higidez funcional do engenho previdenciário.

2. Terceirização: parâmetros teóricos e normativos

A dificuldade vernácula de conceituação da terceirização se reflete negativamente sobre a estipulação de seus parâmetros jurídicos. Não há, entre os campos do Direito, da Administração e da Economia2, sequer consenso a respeito da melhor designação terminológica do fenômeno.

Há quem diga que a expressão seja um neologismo genuinamente brasileiro3. Há autores que preferem terciarização4, associando a terceirização à ascensão do setor terciário, atrelado à prestação de serviços, imiscuído nas rotinas de produção dos setores primário (exploração de recursos naturais) e secundário (indústria e manufatura).

A palavra terceirização, por outro lado, estaria vinculada ao signo tertius, expressão latina alusiva a um estranho (tertiariu) inserido em relação entre outras duas pessoas. Daí o nome em inglês outsourcing, alusivo à colaboração contratual de agentes endógenos na cadeia produtiva de uma organização mercantil. Nos países europeus, por isso mesmo, se prefere falar em subcontratação (sous-traitance e sobcontrattazione, por exemplo).

Certos outros vocábulos – talvez sob o ímpeto de reduzir a carga pejorativa do termo terceirização – soam como eufemismos5: nomes como parceria, filialização,

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reconcentração e desverticalização da empresa empenham-se em disfarçar o que a expressão exteriorização (ou externalização) do emprego deixa às escâncaras: uma mudança de paradigma no aproveitamento de mão de obra.

A terceirização traduz, em sua concepção trivial, “possibilidade de contratar terceiro para a realização de atividades que não constituem o objeto principal da empresa”6, seja mediante o fornecimento de bens, seja com a oferta de serviços especializados7.

Apresentada como importante mecanismo de gestão empresarial, a terceirização evidencia uma técnica de administração segundo a qual as organizações mercantis concentram as suas ações nas atividades-fim (core competencies), transferindo, por via contratual, a terceiros – não integrantes de seu quadro funcional – a execução de tarefas e processos instrumentais. A tônica da especialização, em cada etapa do ciclo comercial, inspira toda a cadeia produtiva.

A tática corporativa da terceirização guarda estreita relação com a formulação de estratégia empresarial – e, como tal, encontra recomendações e aplicações casuísticas, segundo o ramo mercantil, o cenário econômico e o panorama competitivo, por exemplo. Sua implementação, decerto, não envolve apenas benefícios, contemplando também uma série de riscos: dependência dos fornecedores, paralisia tecnológica, contingências logísticas e ambientais, além de riscos sociais e jurídicos8. Estes, considerado o escopo do presente estudo, merecem mais detida avaliação.

Assim, enquanto fenômeno consagrado pelo processo econômico, a terceirização não pode ser ignorada. No entanto, cumpre reconhecer em sua concretização o desmonte da estrutura organizacional clássica, qualificada pela autossuficiência empresarial. Logo, a terceirização, para além da reformulação do rito produtivo e de suas vantagens empresariais, reforja as relações laborais9 – seja pela reconfiguração da economia do trabalho, seja pelas relações jurídicas que se sucedem.

A contratação de fornecedores externos à estrutura da empresa sugere, certamente, a redução dos custos de operação e produção. Os custos fixos decorrentes da contratação direta de mão de obra assalariada se transformam em custos variáveis – cuja dosagem pode ser controlada segundo a demanda, o cenário de mercado e as contingências internas de cada organização10.

Vejamos alguns dados comparativos: na Argentina, o custo laboral com funcionários de quadro permanente gira em torno de 49% do custo produtivo, ao passo que a subcontratação reduz esse percentual para 40%. No Peru, a diferença é ainda mais significativa, ensejando redução de 55% para 22%11. A depender de fatores trabalhistas, civis e tributários, a escala de economia variará segundo as normas de regência de cada sistema jurídico.

Em qualquer cenário, todavia, a terceirização proporciona redução imediata de custos, pela redução numérica do quadro de pessoal da empresa, além da simplificação da sua estrutura organizacional, propiciando maior concentração de recursos no que for atrelado diretamente ao alvo do negócio.

Sob as perspectivas jurídica e social, a terceirização, entretanto, suscita uma série de objeções, associadas à precarização das condições de trabalho, à insegurança do trabalhador, à ruptura de identidade individual e coletiva nas relações laborais12 e, em especial, a sensação de retrocesso social13, pela inacessibilidade a direitos trabalhistas assimilados pela ordem jurídica.

Em termos juslaborais, a terceirização implica, de fato, em uma medida de flexibilização do trabalho: a contração envolve a prestação de serviços por tempo determinado, muitas vezes em regime de tempo parcial ou por tarefa (empreitada), sob responsabilidade jurídica de terceiros

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que não se confundem com o tomador14. Tanto é assim que a Lei n. 13.429/2017, estabelecendo novos parâmetros normativos para a terceirização, ensejou profundas alterações no texto da Lei n. 6.019/1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas.

Em larga medida, a resistência à terceirização tem ligação com o seu potencial aproveitamento abusivo pelas empresas, à busca de eliminação de despesas patronais que, no contexto laboral ordinário, estariam a seu cargo15.

Encubrir una relación laboral no sólo tiene como propósito deformar la relación de trabajo, sino también significa obviar el pago de impuestos o las obligaciones de la seguridad social por parte del patrono; también se presta para ocultar al verdadero empleador, cuando se contrata con un tercero, este funge como intermediario que independiza al empresario de la relación de trabajo y, por ende, del compromiso que debiera asumir ante los trabajadores.

Coloca-se em disputa a indagação se a terceirização enseja violação ao núcleo central dos direitos dedicados aos trabalhadores. Em outras palavras, a preocupação gira em torno do axioma da proteção humana nas relações de trabalho “condição sine qua non para minimizar sua inferioridade econômica e social”16 .

Na literatura jurídica nacional, porém, os debates muito frequentemente desaguavam na discussão – sempre binária – sobre o cabimento da terceirização de atividade-meio da empresa, com a oposta proscrição à atividade mercantil finalística.

Assim era evidenciada, também, a jurisprudência sedimentada no Tribunal Superior do Trabalho, como se infere dos verbetes ns. 239, 257 e, sobretudo, 331 de sua Súmula:

“I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei n. 6.019, de 03.01.1974).

II – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).

III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a...

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