Condições para a busca de reconhecimento legal dos programas de redução de danos e distribuição de cachimbos para dependentes de crack

AutorAlan Indio Serrano/Jamille Zapelini Secchi
CargoMédico especialista em Psiquiatria/Psicóloga, mestre em Saúde e Gestão do Trabalho
Páginas268-275

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1 Introdução: a endemia mundial de drogas ilícitas

Mostrando uma faceta complexa da globalização, o consumo de substâncias psicoativas ilegais tem atraído esforços de pesquisas interdisciplinares em todo o planeta. Algumas destas substâncias são naturais, facilmente extraídas de plantas. Outras são sintetizadas em laboratórios ilegais, por meio de técnicas sofisticadas e caras. Nas últimas duas décadas, o mundo enfrenta um elevado consumo de derivados da planta andina denominada coca, assim como de outras drogas psicoativas. O pó de cocaína pode ser aspirado pelo nariz. Se diluído em água, pode ser injetado. O crack é um subproduto cristalizado, obtido ao se cozinhar a pasta impura da cocaína com bicarbonato de sódio ou com amônia. Estes cristais, ao serem esquentados, liberam uma fumaça que pode ser fumada, causando um efeito mais intenso, mais rápido, mais passageiro e mais causador de dependência do que a cocaína em pó.

Grande parte da população portadora do vírus HIV, causador da síndrome de imunodeficiência humana adquirida (AIDS), contaminou-se ao injetar cocaína nas veias, usando seringas compartilhadas com pessoas infectadas.

1. 1 AIDS: um caroço indigesto para a Saúde Pública

A descoberta desta relação entre a AIDS e as seringas compartilhadas acendeu o debate sobre os projetos de redução de danos. A AIDS já vinha se apresentando como um caroço duro e de difícil digestão no universo das políticas sanitárias: a implantação de políticas preventivas, terapêuticas e assistenciais esbarrou, desde a colocação do problema, no início dos anos 80, em questões de cunho antropológico, religioso, ideológico e econômico.

Entre estas questões, por exemplo, estavam:

(1) o reconhecimento de que determinadas práticas homossexuais e a promiscuidade sexual abrem portas para a contração e a transmissão seqüencial da doença. Discutir este tema cria o risco de associar os esforços de informação preventiva à discriminação de determinados grupos minoritários e de pessoas em particular (homossexuais, prostitutas, michês).

(2) a demanda de discussões públicas sobre o uso de preservativos, a fim de proteger os corpos sadios do contato com o esperma contaminado. Isto criou aborrecimentos a algumas tradições religiosas vigentes, em especial ao Catolicismo.

(3) o reconhecimento de que nem todas as pessoas responderão adequadamente a prescrições e atos dos serviços de Saúde Pública para se diminuírem as condições que levam à doença.

(4) o reconhecimento de que vários cidadãos negar-se-ão a mudar seus estilos de vida e seus comportamentos arriscados. Isto estabelece conflitos insolúveis do interesse individual versus o esforço coletivo por melhor saúde.

(5) o custo elevado dos tratamentos para AIDS e para dependências químicas. Estes tratamentos implicam a criação de redes institucionais de serviços, contratação e formação de recursos huma-Page 269nos especializados e gastos com remédios, para uma população que comporta vastas fatias rebeldes à profilaxia e ao tratamento. Os investimentos neste setor arriscam-se, se mal conduzidos, a gerar pouco retorno frente às metas idealizadas pela Saúde Pública.

1. 2 Vasos e agulhas comunicantes

A transmissão de doenças infecto-contagiosas - como a AIDS e as hepatites virais - em grupos de usuários de drogas ilegais trouxe à baila a discussão sobre a parafernália utilizada para seu consumo: agulhas, seringas, manguitos de borracha, álcool para desinfecção, algodão, água para diluição da droga, cachimbos para fumar crack, e outros materiais. O trabalho da polícia é proibir o uso ilícito desta parafernália. Na sua impossibilidade, restou à Saúde Pública aproveitar o conceito de redução de danos: a idéia de transformar a parafernália em objeto de uso estritamente pessoal, evitando sua transformação em veículo comunicante de doenças.

A sociedade e os órgãos estatais conseguem legislar e prescrever sobre os comportamentos de indivíduos e de grupos. Mas sua eficácia é limitada. O conceito de redução de danos baseia-se num pragmatismo que reconhece impotências e limites nos poderes organizados.

Se as sociedades contemporâneas tiverem que conviver, sempre, com várias pessoas envolvidas em comportamentos de risco, como as relações sexuais promíscuas e o abuso de drogas, o estado precisará de abordagens e de políticas públicas que cheguem, de alguma forma, a dialogar com os estilos de vida perigosos. Tais estilos de vida incluem padrões de relacionamento, alimentação, consumo, diversão, moda e expressão da sexualidade e podem refletir tanto atitudes meramente individuais quanto valores globalizados.

Em todo o mundo, os programas de redução de danos para usuários de drogas geralmente voltamse à educação dos consumidores sobre os riscos implicados no uso de cada droga ilegal, informações sobre formas mais seguras de usar tais substâncias, informações sobre os riscos da overdose e da transmissão de doenças. Indicam oportunidades de tratamento e encaminham aos serviços especializados. Permitem a compra de seringas e trocam as seringas usadas por seringas novas, diminuindo o risco de contaminação. Em países onde o poder público não tem obrigações de prover o acesso universal a serviços de saúde, a discussão enveredou, historicamente, para a legalidade de o médico prescrever seringas a dependentes de substâncias injetáveis que se negassem a parar de injetar a droga e para a legalidade da venda das seringas, nas farmácias, para este fim (Cf. BURRIS et al., 2000; COFFIN et al., 2000). No Brasil, a tarefa de fornecimento da parafernália que propicia a injeção endovenosa da droga foi assumida pelo estado, em moldes semelhantes aos do Canadá (Cf. GARMAISE, 2005).

A preocupação com a parafernália para consumo de drogas ilícitas, elevada à condição de insumo para o exercício da prevenção da saúde, tem aspectos sanitários, filosóficos, sociológicos e jurídicos.

2 A tentativa de construção da presença do estado entre dependentes de derivados de coca

O Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e de AIDS, do Ministério da Saúde, incentiva ações de redução de danos dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, desde 1994, em conjunto com o Programa das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas (UNDCP). Em 1995, em Salvador, Bahia, foi inaugurado o primeiro projeto oficial brasileiro nesta...

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