Procuração, Mandato e Representação: Da representação voluntária como resultante funcional da concertação entre o negócio jurídico de outorga de poderes e o contrato de mandato

AutorEstevan Lo Ré Pousada
Ocupação do AutorBacharel, Mestre (2006) e Doutor ('summa cum laude') em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (2010)
Páginas317-333

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Estudo previamente publicado na coletânea organizada por G. H. JABUR, A. J. PEREIRA JÚNIOR, Direito dos Contratos II, São Paulo, Quartier Latin, 2008, pp. 137-150.

1. Introdução

Óbice metodológico preliminar. A complexidade dos temas sugeridos no título do presente estudo (procuração, mandato e representação) afasta de imediato qualquer tentativa de se promover uma análise medianamente aprofundada sobre grande parte dos aspectos a eles afetos. Orientados por tal premissa, resultou-nos evidente que a abordagem pretendida nas próximas páginas teria de resultar de uma opção metodológica entre um enfoque panorâmico e uma perspectiva (razoavelmente) aprofundada – comprometida esta, entretanto, com a demarcação de estreitos limites entre os quais haveria de ser desenvolvida.

Critério de abordagem dos temas sugeridos. Diante de tais possibilidades fomos compelidos à adoção da segunda alternativa, não apenas em virtude da existência de um grande número de obras dedicadas ao estudo monográfico de cada um dos temas sugeridos, mas também em função das circunstâncias em que tal texto foi produzido. Consubstanciando o resultado de preleção realizada junto ao Curso de Especialização em Direito dos Contratos do Centro de Extensão Universitária – embora tivéssemos tentado evitar um excessivo distanciamento em relação aos interesses práticos dos presentes –, a análise se comprometeu com um enfoque funcional dos institutos jurídicos invocados (contrato de mandato e negócio jurídico de outorga de poderes), vinculados funcionalmente por aquilo que frequentemente se designa por representação voluntária.

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Proposta de estudo. Assim, a despeito das eventuais sugestões despertadas pelo título do presente trabalho, desde logo advertimos o leitor de que nos voltaremos, nesta ocasião, exclusivamente à representação voluntária; e para que se possa atingir um resultado minimamente satisfatório, nos parece indispensável o cotejo entre as regras atinentes ao contrato de mandato e ao negócio jurídico de outorga de poderes. Ora, uma vez definido o ambiente em que seria desenvolvida a abordagem, coube-nos escolher por protagonista o último dos institutos – não apenas em virtude da inexistência de disciplina correspondente aos artigos 115 a 120 no Código Civil revogado, mas também em decorrência da maior raridade do tratamento de tal tema quando comparado àquele conferido ao contrato de mandato.

Etapas da análise. Efetuado o diagnóstico das limitações objetivas inerentes ao nosso esforço investigativo; escolhida a perspectiva metodológica reputada mais adequada aos propósitos do Curso; eleito o eixo sobre o qual se desenvolverá o trabalho; falta-nos, neste momento, definir as etapas a serem percorridas até o seu respectivo desfecho. Assim, consideramos adequado empreender nesta ocasião uma apresentação do elemento funcional de junção entre os institutos referidos – vale dizer, a representação voluntária (contrapondo-a à sua correlata decorrente diretamente do texto de lei) – em meio à qual teremos oportunidade de efetuar maiores digressões sobre o negócio jurídico de outorga de poderes e pontos controvertidos como o excesso e o abuso (quanto aos poderes de representação).

Conclusão. Eis aí apresentadas as linhas gerais a serem percorridas neste iter polarizado por uma consideração funcional – repita-se – do contrato de mandato e do negócio jurídico de outorga de poderes, a qual terá por momento conclusivo a diagnose de sua repercussão quanto à fenomenologia prática da representação voluntária.

2. Da representação voluntária como resultante funcional da concertação entre o negócio jurídico de outorga de poderes e o contrato de mandato

Histórico da representação romana. Cumpre desde logo assinalar que o direito romano não conheceu, como regra, a representação direta (por

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meio da qual o representante atua em nome e por conta do representado). Nesse sentido, é suficientemente eloquente o fragmento de Gaio que ressalva unicamente a situação relativa à aquisição da posse (G. 2, 95). Assim, por diversas razões – dentre as quais pode-se assinalar questões concernentes à estrutura familiar romana, à capacidade de direito genérica do paterfamilias, à pessoalidade e à formalidade (oralidade) características dos atos jurídicos então praticados –, entre os romanos era usual tão somente a representação indireta (em virtude da qual os atos eram cumpridos por conta do representado, embora em nome do próprio representante)1.

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Ausência de disciplina no Código Civil revogado. O Código Civil brasileiro de 1916 não continha uma disciplina unitária a respeito da representação; embora referências esparsas pudessem ser entrevistas em meio a diversos setores do ordenamento civil – elucidativas a tal respeito são as regras concernentes ao contrato de mandato, à tutela, à curatela, à responsabilidade por atos dos prepostos, às deliberações dos órgãos das pessoas jurídicas –, não havia aquele tratamento sistemático necessário à elevação de uma disciplina à categoria de instituto jurídico2.

Menção expressa à representação pelo Código Civil de 2002. De modo diver-so, o Código Civil de 2002, por meio das regras contidas entre os artigos 115 e 120, defiagrou um novo cenário: em tais regras são disciplinadas a

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representação legal (com efeitos jurídicos decorrentes diretamente da lei) e a representação voluntária (cujos efeitos decorrem de negócio jurídico)3.

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Representação legal e representação voluntária. O artigo 115 do Código alude às duas possibilidades de origem da representação: a lei ou o negócio jurídico. Neste quadro, pergunta-se: seriam autênticos representantes o núncio, o órgão e o preposto4

Sobre o núncio, o órgão e o preposto. A resposta com relação aos dois primeiros é forçosamente negativa: em primeiro lugar porque o núncio não manifesta vontade, mas simplesmente transmite (como porta-voz) declaração do próprio interessado. Eis a razão por que o pagamento feito por mensageiro incapaz é indiscutivelmente válido – uma vez que o animus solvendi é o do devedor e não daquele que materialmente transmite a tença (sobre coisa cuja posse não tem). De sua parte, o órgão de pessoa jurídica não representa, pois enquanto sua parte integrante é desprovido da autonomia indispensável à defiagração do sistema representativo, em

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boa técnica poder-se-ia dizer que este tão somente “presenta” a pessoa jurídica de cujos quadros participa5.

Sobre o núncio, o órgão e o preposto (cont.). Dentre as hipóteses levantadas, apenas e tão somente o preposto representa a pessoa jurídica a que está, por exemplo, contratualmente vinculado; contudo, é necessário ressalvar que neste caso estamos diante de negócio jurídico de outorga de poderes de representação sem contrato de mandato (representação voluntária sem mandato)6.

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Efeitos da representação sobre a esfera jurídica do representado. Quanto aos efeitos da representação voluntária, o artigo 116 do Código Civil dispõe que os efeitos da manifestação de vontade do representante repercutem na esfera jurídica do representado, desde que o negócio jurídico tenha sido celebrado dentro dos limites dos poderes outorgados; e neste ponto o negócio jurídico de outorga de poderes e o contrato de mandato se aproximam em grau máximo. Para efeitos didáticos, suponha-se a seguinte situação: Caio, proprietário do cavalo de passeio, tenciona aliená-lo a Mévio, em feira pública a se realizar após sua partida da cidade. Sem a possibilidade de comparecer pessoalmente na oportunidade avençada, lança mão dos préstimos de seu amigo Tício, encarregando-o da alienação a se seguir (incontinenti) à celebração de contrato de compra e venda – outorgando-lhe para tanto os poderes de representação necessários.

Eficácia do negócio jurídico de outorga de poderes de representação (limites dos poderes e confiito de interesses levado a conhecimento de terceiro). Ao contrário do que se verifica com relação ao negócio jurídico unilateral de outorga de poderes (cuja definição é obra de construção essencialmente doutrinária), o mandato é definido como contrato – por força do art. 653 do Código Civil – em virtude do qual exsurge vínculo entre mandante e mandatário. Reza o texto legal que sua finalidade é a prática de atos ou a administração de interesses, as quais poderíamos comodamente sintetizar sob a expressão “gestão de negócios”. De fato, inexiste qualquer diferença técnica entre a atuação propriamente dita daquele que se encarrega da administração da fazenda alheia em virtude de contrato (art. 653 CC) ou de ato unilateral (art. 861 CC). Em ambos os casos se está diante de atuação em prol dos interesses de outrem – muito embora com o assentimento do interessado na primeira hipótese.

Eficácia do negócio jurídico de outorga de poderes de representação (limites dos poderes e confiito de interesses levado a conhecimento de terceiro) (cont.). Em virtude da distinção entre suas respectivas naturezas jurídicas (negócio jurídico unilateral e contrato) – embora ambos afetos à prática da “gestão” –, enquanto a prática de atos em nome (e por conta) do interessa-

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do corresponde a exercício dos poderes de representação outorgados, no que toca ao contrato de mandato a mesma ação configura adimplemento obrigacional principal; do que decorre que enquanto a outorga de poderes visa viabilizar o exercício da gestão (particularmente no que toca à conclusão de negócios jurídicos), o contrato de mandato visa disciplinar a atuação em prol do interessado.

Eficácia do negócio jurídico de outorga de poderes de representação (limites dos poderes e confiito de interesses levado a conhecimento de terceiro) (cont.). Ou seja, do contrato de mandato defiui uma relação que interessa...

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