O Direito Processual Coletivo e a Proposta de Reforma do Sistema das Ações Coletivas no Código de Defesa do Consumidor no Brasil

AutorGregório Assagra De Almeida - Flávia Vigatti Coelho De Almeida
CargoMestre em Direito Processual Civil e doutor em Direito Difusos e Coletivos (PUC/SP) - Advogada. Especialista em Direito Processual Civil (Universidade Gama Filho)
Páginas11-74

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1. Introdução

O presente artigo visa abordar o direito processual coletivo como novo ramo do direito processual e a proposta legislativa de reforma do Código de Defesa do Consumidor que disciplina as ações coletivas.

Inicialmente, analisa-se a inserção dos direitos coletivos como direitos fundamentais, com destaque para a nova summa divisio constitucionalizada no país: direito individual e direito coletivo. Em seguida, discorre sobre o direito processual coletivo como um novo ramo do direito processual, seus princípios, regras interpretativas e obstáculos.

Faz-se o estudo das três principais etapas de reforma do sistema de tutela coletiva no Brasil e, na sequência, são abordadas as propostas legislativas de criação de um Código Brasileiro de Processos Coletivos.

Após analisar as principais diretrizes do PL 5.139/09, passa-se ao estudo pontual e relexivo da proposta legislativa que visa alterar a Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para aperfeiçoar a disciplina das ações coletivas. Essa proposta legislativa não terá aplicabilidade limitada à defesa do consumidor, pois seu objetivo é alterar o microssistema de tutela jurisdicional coletiva e, assim, observa-se que suas disposições (caso aprovadas) terão aplicabilidade ao direito processual coletivo comum em geral.

Finaliza-se o artigo com as conclusões pontuais sobre as questões abordadas e a apresentação das referências utilizadas na pesquisa.

2. A inserção no Brasil dos direitos e interesses coletivos como direitos fundamentais: uma nova summa divisio constitucionalizada e sua multifuncionalidade no sistema processual

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, foi a primeira Constituição do país em que o direito coletivo, amplamente considerado, foi inserido, ao lado dos direitos individuais, no plano da teoria dos direitos e garantias constitucionais fundamentais positivada no sistema jurídico pátrio. A inserção consta de texto expresso da Constituição, como um dos seus capítulos, o primeiro do título II, sobre os Direitos e Garantias Fundamentais e, certamente, é o resultado da legítima atuação das forças sociais e políticas que contribuíram e pressionaram a Assembleia Nacional Constituinte, instalada no país em 19871.

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Não há previsão nesse sentido nas constituições de outros países, tais como a Constituição norte-americana de 1787 e suas respectivas emendas, a Constituição italiana de 1947, a Constituição alemã de 1949, a Constituição francesa de 1958, a Constituição espanhola de 1978; a Constituição argentina de 1994. Nem mesmo a proposta de uma Constituição Europeia insere o direito coletivo no plano das teorias dos direitos fundamentais. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em Nice, aos 7 de dezembro de 2002, igualmente não faz menção expressa ao direito coletivo como categoria dos direitos fundamentais.

A Constituição portuguesa de 1976, na parte I, referente aos Direitos e Deveres fundamentais, título I, dos Princípios Gerais, prevê, em seu art. 12:

1. Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição. 2. As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres compatíveis com a sua natureza2. A doutrina portuguesa não tem, contudo, realizado uma leitura ampliativa e construtiva da previsão do art. 12, 2, transcrito. Jorge Miranda, por exemplo, chega a airmar que o fato de a Constituição portuguesa ter acrescentado direitos às pessoas coletivas não representa equiparação aos direitos individuais3.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, ao contrário, utiliza-se de termo mais adequado e amplo, colocando no mesmo patamar Direitos Individuais e Direitos Coletivos (título II, capítulo I). Ao invés de utilizar o termo pessoa, dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, a Constituição brasileira vale-se do termo direitos coletivos no plural, de forma a abranger, em uma dimensão constitucional objetiva, todas as espécies de direitos ou interesses coletivos.

As assertivas acima não signiicam que não possa haver proteção do direito coletivo ante a Constituição de outros países. Sustenta-se, isso sim, que a Constituição brasileira atual inovou na proteção dos direitos e interesses massiicados, conferindo-lhes dignidade constitucional própria para uma nação democrática que tem como seus objetivos fundamentais a criação de uma sociedade justa, livre e solidária. Não há como transformar a realidade social sem a eliminação das desigualdades e injustiças sociais, sem a proteção integral e efetiva dos direitos coletivos, amplamente considerados. A proteção predominantemente individualista é própria de um Estado Liberal de Direito, que se obriga a conviver com as injustiças e desigualdades sociais e permanece de mãos atadas.

José Afonso da Silva, ao comentar a inserção, no Brasil, do direito coletivo no plano da teoria dos direitos e garantias constitucionais fundamentais,

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declarou ter faltado explicitação adequada de quais seriam efetivamente esses direitos4. Todavia, entende-se que essa falta de explicitação, presente no capítulo I, título II, da CF/88, ao invés de restringir, amplia a própria dimensão constitucional do direito coletivo. Trata-se de uma cláusula constitucional aberta sobre o próprio direito coletivo, como direito constitucional fundamental, com o condão de incorporar todas as dimensões constitucionais sobre direitos coletivos, previstas expressa ou implicitamente na CF/88. Por isso, a previsão em questão está em perfeita sintonia com a

cláusula geral aberta dos direitos e garantias constitucionais do § 2º do art. 5º da CF/88, tanto que o próprio José Afonso da Silva arrola inúmeras espécies de direito coletivo presentes ao longo do texto constitucional5.

A aferição em abstrato e de forma genérica do direito coletivo não é uma técnica interpretativa perfeita. O mais adequado é procurar aferir se determinado direito é realmente de dimensão coletiva, levando-se em consideração o plano concreto da tutela jurídica deduzida ou a ser deduzida6.

O fato de o direito coletivo pertencer, no Brasil, à teoria dos direitos constitucionais fundamentais impõe que se imprima à expressão uma leitura aberta e ampliativa, própria da interpretação dos direitos constitucionais fundamentais do pós-positivismo. Destarte, a cláusula constitucional Direito coletivo (título II, capítulo I, da CF/88) abrange os direitos e interesses difusos, os direitos e interesses coletivos em sentido restrito e os direitos e interesses individuais homogêneos, integrando também, em um plano geral e abstrato, o conjunto de garantias, regras e princípios que compõem o direito coletivo positivado no país, bem como, e especialmente, a Constituição, cuja proteção, em abstrato e na forma concentrada, é uma exigência do constitucionalismo brasileiro e se legitima por um inquestionável interesse coletivo objetivo legítimo.

A partir dessa nova diretriz constitucional, concluiu-se que a summa divisio clássica, direito público e direito privado, não foi recepcionada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Também, pelas mesmas razões, não foi acolhida a classiicação tripartite sustentada por alguns doutrinadores, que defendem a existência das seguintes dimensões do direito: público, privado e transindividuais. A nova...

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