Processos coletivos como instrumento de efetivação dos fundamentos do estado democrático de direito

AutorSabrina Nasser de Carvalho
Páginas123-178
123
3
PROCESSOS COLETIVOS COMO
INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DOS
FUNDAMENTOS DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
3.1 PROCESSO COLETIVO MODERNO: REDEFINIÇÃO DE UM
NOVO MODELO PROCESSUAL
A evolução da Ciência processual é resultado das transformações
culturais e políticas sentidas no seio da sociedade. O amadurecimento
do verdadeiro valor e sentido outorgado às normas instrumentais é um
produto histórico, construído pelo debate doutrinário, fruto de pressões
externas que exigiram do processo um compromisso com o espírito
político e com os anseios sociais de cada época.
As bases do processo civil clássico espelhavam-se na racionalidade
de um Estado de matriz liberal, firmando um pacto rígido com a técni-
ca, sem qualquer preocupação com o princípio da efetividade do direi-
to material e com os reflexos que o provimento jurisdicional poderia
fazer-se sentir perante a sociedade.207
207 Sobre o assunto, Carlos Alberto de Salles ressalta que o Direito processual clássico
não tinha qualquer comprometimento com o conteúdo dos direitos materiais, mas tão
124
SABRINA NASSER DE CARVALHO
O modelo individualista aproximava o iter procedimental a
uma equação quase matemática, mecânica, refratária à permeabili-
dade de qualquer ideologia. Para tanto, o órgão julgador deveria ser
neutro e, durante o desenvolver do procedimento, restringia-se a
fiscalizar a ordem e a formalidade dos atos processuais, prolatando
ao final, uma decisão vinculativa e coercitiva às partes, mantendo-se
indiferente aos resultados produzidos. Não era por outra razão que
os poderes do magistrado eram reduzidos, transformando-o em um
mero burocrata.
Esta neutralidade do modelo individual contaminava também os
demais institutos do processo civil. Os procedimentos eram rigidamen-
te padronizados e estruturados de forma a refletir nos institutos proces-
suais as situações clássicas de contraposição dos direitos obrigacionais,
atribuindo a uma das partes a função de credor e, à outra, a função de
devedor,208 consagrando, ainda, a incoercibilidade do facere.209 Ademais,
não havia preocupação com as diferenças entre os litigantes em potencial
ao acesso à justiça,210 pois a tônica estava na isonomia formal entre as
partes, tão cara aos valores da época.
Ainda no modelo individual, aos institutos processuais era fran-
queada uma interpretação restritiva, exigindo, no que se refere à legiti-
midade de agir, uma coincidência exata entre o sujeito titular do direi-
to material e o titular da pretensão posta em juízo.
No que diz respeito à coisa julgada, garantia emblemática do
Estado Liberal, esta era interpretada como o confinamento estrito da
somente com a realização de seus objetivos internos. (“Processo civil de interesse
público”. In: SALLES, Carlos Alberto (org.). Processo civil e interesse público: o processo
como instrumento de defesa social. São Paulo: RT, 2003, p. 45).
208 MOREIRA, José Carlos Barbosa. “A ação popular do direito brasileiro como
instrumento de tutela jurisdicional dos chamados ‘direitos difusos’”. Temas de direito
processual. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 7.
209 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva. São Paulo:
RT, 2006, p. 29.
210 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Traduzido por Elen
Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 2.
125
PROCESSOS COLETIVOS E POLÍTICAS PÚBLICAS
eficácia da decisão às partes envolvidas na relação processual, defeso de
ser extensível a terceiros.211
Como nos mostra a história, o Estado Liberal foi substituído pelos
valores de solidariedade e coletivismo, ínsitos ao Estado Social. Por
derradeiro, os preceitos democráticos, a sobreposição dos direitos fun-
damentais e da dignidade da pessoa humana, elevada a fundamento
político de um país, consolidaram as bases para o Estado Democrático
de Direito.
Neste novo modelo institucional, os direitos sociais foram erigidos
à categoria de direitos fundamentais, possibilitando ao titular pleitear a
sua satisfação contra o Estado. Esta nova função transformou o Poder
Judiciário em instância adequada para a reafirmação da cidadania e fran-
queou um viés político a este Poder, elevando-o a categoria de meio
alternativo de gestão da coisa pública.212 Tais direitos, registrados pela
marca da “transindividualidade”, necessitavam de um instrumento plu-
ral e democrático para veicular as pretensões decorrentes de sua violação.
Ao lado dos direitos sociais, os direitos de terceira geração, ínsitos
à sociedade de consumo e à economia de massa, deflagraram uma infla-
ção legislativa.213 O resultado foi a explosão de litigiosidade, pois as
violações aos direitos deixaram de ser individuais e passaram a configu-
rar violações em massa,214 forçando respostas estratégicas, preventivas e
também coletivas do Poder Judiciário.
211 VENTURINI, Elton. Processo civil coletivo. São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 27/28.
212 GRINOVER, Ada Pellegrini. “Significado social, político e jurídico da tutela dos
interesses difusos”. RePro, São Paulo: RT, n. 97, pp. 9-15, 2000, p. 10.
213 “O desenvolvimento social, econômico e tecnológico sem precedentes do século
XX fez com que a sociedade se tornasse crescentemente mais complexa e radicalmente
especializada em suas funções e novos direitos fossem positivados. O direito viu-se
incumbido de regular cada vez mais aspectos da vida social, adentrando em áreas nunca
antes disciplinadas”. (GAVRONSKI, Alexandre Amaral.“A tutela coletiva do século
XXI e sua inserção no paradigma jurídico emergente”. In: MILARÈ, Édis (coord.). A
ação civil pública após 25 anos. São Paulo: RT, 2010, p. 40).
214 “Interesses de massa, que comportam ofensas de massa e que colocam em contrastes
grupos, categorias, classes de pessoas”. (GRINOVER, Ada Pellegrini. “A ação civil pública
refém do autoritarismo”. O processo: estudos e pareceres. São Paulo: Perfil, 2005, p. 236).

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT