O Processo de Globalização e o Direito a ter Direitos dos Migrantes Não Documentados

AutorEduardo Pereira Merlin
Ocupação do AutorAdvogado, especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
Páginas81-93

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Introdução

Em meio a um influxo revolucionário de tecnologias sem precedentes, a velocidade da informação e a perenidade da condição de Estado de Exceção em muitos países, a migração, antes somente vinculada à ingerência de povos acometidos por catástrofes naturais ou guerras, tem gerado um novo cenário: trabalhadores migrando de forma não documentada perseguindo postos de trabalho; de maneira que tal irregularidade de documentação resulta no não reconhecimento, a esses trabalhadores, de sua condição de cidadão nos países para os quais migram.

A globalização, enquanto fenômeno econômico, traçou novas fronteiras que não se identificam necessariamente com os interesses nacionais e os econômicos de cada país, que tentam internamente garantir políticas protecionistas para seus cidadãos trabalhadores e para a própria economia.

Enlaçado na disputa comercial, encontra-se o homem, que deveria ser o epicentro da relação de trabalho, mas que hoje - frente à escassez do trabalho formal com as devidas garantias mínimas, ou diante dos efeitos cada vez mais corriqueiros da incorporação de empresas por Multinacionais - tem que buscar fora de seu Estado de origem, trabalho que até pouco tempo conseguiria em seu país.

O presente estudo visa abordar a atual condição dos migrantes não documentados. Não será esquecida, também, a investigação sobre a atual migração de conglomerados empresariais em busca de mercados (Países), que lhes ofereçam menores garantias sociais (trabalhistas e previdenciárias) aos seus tutelados (cidadãos), ou àqueles que estejam sob seu manto, buscando assim, estabelecer ainda maiores margens de lucratividade.

Objetiva-se expor esse importante vértice do impacto da economia sobre o direito, singularmente a arendtiana, sob a perspectiva do direito a se ter direitos, eis que os migrantes não documentados são alijados até mesmo de tal garantia, ao arrepio das conquistas já havidas pelo direito internacional aos direitos humanos e pelo direito internacional ao trabalho.

Os migrantes não documentados, além da total marginalidade aos direitos fundamentais, se tornam vítimas frequentes do trabalho análogo ao escravo, submetidos a toda sorte de degredo de garantias mínimas de condição de sobrevivência, ante as condições de cerceamento de liberdade, trabalho forçado, bem como expostos a condições deploráveis de saúde, higiene, moradia e educação.

Tal fenômeno em outrora vinculado às Duas Grandes Guerras Mundiais, que esfacelaram nações, levando vários povos à migração forçada, já foi estudo de Hannah Arendt (ARENDT, 1989; 2007), em duas obras, sendo que em Origens do totalitarismo, no Capítulo 5 - O declínio do Estado Nação e do Fim dos Direitos dos Homens -, deixa claro que havia um prenúncio do que hoje vivenciam os migrantes não documentados.

Nesse novo cenário, o migrante indocumentado, que sempre foi visto como uma mão de obra barata, no

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mais das vezes mantida à marginalidade, tem sido alvo de políticas severas de repressão, como a realizada pelo Parlamento Europeu de 2008, que previu a expulsão dos imigrantes irregulares dos países europeus, permitindo a prévia detenção por período que pode se estender por até 18 meses, conforme as circunstancias, até que se proceda a efetiva expulsão, além da proibição de retorno à União Europeia por um período de cinco anos.1Nesse cenário sombrio, é papel do direito, especialmente do Direito do Trabalho, que tem sua base na proteção do hipossuficiente, não olvidar aquele que, por falta de documentação, visto de permanência, tem seus núcleos essenciais de direitos reduzidos a nada, em contraposição ao disposto no conjunto normativo de proteção ao nacional.

1. Globalização da economia

Não adianta se adentrar o processo migratório, sem fazer alusão inicialmente ao processo de globalização da economia, cabendo destacar o conceito do FREITAS JÚNIOR (2004, p.91), sobre globalização econômica:

[...] progressiva internacionalização dos mercados de bens, serviços e créditos, induzida pela redução de tarifas de exportação, de obstáculos aduaneiros e pela padronização das operações mercantis. Essa internacionalização trouxe, como subproduto, a súbita homogeneização dos hábitos de consumo assim como das predicações e da apresentação formal dos bens e serviços afetados pela expansão dos mercados, resultando ainda na fragmentação e na dispersão internacional das etapas do processo produtivo.

No mesmo capítulo, FREITAS JÚNIOR (2004, p.91-92), aclara o efeito no mercado de trabalho, já que um efeito da globalização na economia, foi a quebra da organização empresarial fordista, no qual havia um inchaço de mão de obra, e mediante a globalização, ficou claro que o modelo a ser adotado seria o de Unidades Produtivas, especializadas, dando azo à criatividade do empresariado internacional, difundindo-se as ideias de terceirização, downsizing, qualidade total, administração participativa, os quais impactaram negativamente na geração de postos de trabalho, e via de consequência o enfraquecimento do poder sindical. Segundo FREITAS JÚNIOR:

[...] A dispersão global das etapas do processo produtivo, acompanhada pela exaustão do modelo de empresa fordista e pela emergência de um novo paradigma de organização empresarial e de relações do trabalho, aliado ao desemprego estrutural, à progressiva precarização dos vínculos de trabalho, à estagnação do número dos postos de trabalho disponíveis nas indústrias, ladeado pelo crescimento proporcional do número de trabalhadores ocupados no setor de serviços, em segmentos formais da economia, ou, ainda que em segmentos formais, mediante vínculos informais de ocupação, entreabriram um itinerário de crise jamais vista na história do sindicalismo. (FREITAS JÚNIOR, 2004, p. 93)

Diante de tal quadro, verifica-se que a globalização da economia guarda profundas relações com as migrações humanas, em especial com a questão da migração internacional, situação corriqueira em um mundo no qual, através da evolução da tecnologia se fez aparentar menor e mais acessível.

Todavia, não há que se olvidar que as relações transnacionais surgidas especialmente nas duas grandes guerras mundiais, não trouxeram somente um avanço tecnológico, mas de estreitamento de elo entre transnacionais, não ligadas por origem comum, quer seja por família étnica, cultural ou proximidade geográfica.

Qualquer que seja o conceito adotado, a globalização atinge a ordem jurídica, sendo que, o direito do trabalho parece ser o ambiente jurídico mais suscetível às transformações decorrentes do processo de globalização, o que põe em perigo a dignidade do trabalhador, na presente conjuntura2.

Para MELHADO (2006, p. 36), a mundialização do capital, está solapando um fenômeno de cindir definitivamente a sociedade mundial entre pobres e ricos, vejamos:

A mundialização do capital, em lugar de globalizar, está rasgando fendas de marginalização internacional mediante o aprofundamento das desigualdades entre os povos e a exclusão de países e regiões, de um lado, e pela marginalização endógena de cada nação, do outro, com o alargamento dos seus abismos sociais. A globalização não e "global". Ha pelo menos duas mundializações diferentes, separadas pelo

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arame farpado dos guetos, produzindo a "divisão definitiva do mundo entre os que poderão continuar utilizando os recursos como sempre fizeram e aqueles aos quais o ‘modo de desenvolvimento’ não reservaria mais que o direito de assistir, graças as imagens projetadas pela mídia mundializada, como estariam passando os bem-de-vida [...].

Obtempera-se, portanto, que o fenômeno atual e progressivo de globalização da economia tem criado um ambiente inóspito nas relações entre capital e trabalho3. Diante de tais assertivas, a Organização Internacional do Trabalho OIT, como agência ONU dedicada à promoção da justiça social e do trabalho decente, tem essa questão em sua pauta temática oficial desde 1999, quando criou o Grupo de Trabalho sobre a Dimensão Social da Mundialização.

Verifica-se que o golpe mais forte está recaindo sobre a fatia da população de migrantes menos abastados, em especial para os que não possuam qualificação profissional. Como afirmado pelo ex-presidente Jacques Chirac, em discurso proferido em Conferencia da OIT4, em 1996, "é preciso pôr a economia a serviço do ser humano e não o ser humano a serviço da economia". (apud SÜSSEKIND, 2000, p. 311)

Portanto, o que deve ser evidenciado em qualquer normatização da matéria, seja sob o ponto de vista do direito interno ou transnacional, deve ter como foco principal a dignidade do trabalhador, seja qual for sua origem nacional ou o lugar em que põe à disposição sua prestação de serviço, e algo que pode contribuir efetivamente para que esse processo de globalização seja fundado primeiramente no ser humano, já que a economia e o trabalho é que devem servir à humanidade, e não o contra fluxo que vivenciamos na atualidade.

2. Internacionalização dos postos de trabalho e empresas transnacionais

A internacionalização dos postos de trabalho foi a saída do capitalismo, que, sempre em busca de novos mercados para seus produtos, deu um caráter cosmopolita para a produção e o consumo em todos os países, buscando locais com menor proteção legal (trabalhista e previdenciária), para baratear a produção de bens e serviços.

Diversos autores, valendo citar IANNI (2000, p. 55-56), concluem que com a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética...

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