O processo: comparação funcional com o direito na doutrina e na lei

AutorJéssica de Souza Lima Bastos Carvalho
CargoBacharelando em Direito pela Universidade Federal Fluminense, cursando o 6º período.
Páginas164-180

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I Introdução

O presente1 trabalho tem como objetivo interpretar a obra-prima “O Processo” 3 , de Franz Kafka 4 de maneira ampla, de modo que seja possível analisá-lo em relação ao Direito em seus conceitos doutrinários, levando em consideração o ordenamento jurídico pátrio.

Preliminarmente, é importante perceber que a Alemanha, país em que Kafka formou-se em Direito, entre os anos 1871 e 1914, encontrava-se em uma situação de “Paz armada”; no contexto de uma corrida armamentista em consonância com a ausência de guerras na Europa. Nesta época, a sociedade alemã arraigava-se nos rígidos valores do militarismo prussiano, caracterizado pela obediência quase cega do indivíduo perante o, o qual passou a preconizar o ideal de superioridade da cultura e da raça germânica. Mediante aPage 165interpretação do trabalho geral de Kafka e o ano em que se formou (1906), é flagrante o desgosto que o escritor explicita pela sociedade opressora e rígida na qual estava inserido e como o mesmo critica ferozmente o funcionamento dos sistemas despóticos de poder.

Essa ambientação histórica torna possível entender a configuração de algumas passagens do livro que são estranhas ao que poderíamos relacionar com o Direito brasileiro; como a atuação de seus personagens e a disposição de certos eventos, que baseavam-se nas duras leis alemães da época. Além disso, é interessante relacionar algumas práticas jurídicas que estejam fora deste âmbito. Neste caso, o Direito será percebido na sua atuação real, desmascarando a corrupção, o jogo de influências e o desvio de finalidade que denigrem, contaminam e desvirtuam o conceito filosófico conhecido e aceito do Direito como o guardião em defesa da justiça.

II A detenção

Ao acordar, o personagem Joseph K. é surpreendido dentro de seu quarto por homens não identificados que o declaram detido e não lhe explicam o motivo de sua detenção.

Já no início do livro ocorrem eventos estranhos ao funcionamento comum do Direito. No direito nacional, é necessária a condenação do juiz para que ocorra a detenção. O inciso XXXIX do artigo da Constituição Federal ratifica como direitos e garantias fundamentais o artigo 1º do Código Penal, segundo o qual não pode haver pena sem prévia cominação legal. Ora, como pode se estabelecer uma pena a um indivíduo se este nem sabe o por quê de estar sendo punido?

A detenção 5 é uma espécie de pena privativa de liberdade. Deve ser cumprida em regime semi-aberto ou aberto, salvo necessidade de transferência para regime fechado, previsto no artigo 33, caput, 2ª parte. No caso de Joseph K. pode-se dizer que sua pena era cumprida em regime aberto, pois este não foi em nenhum momento paraPage 166estabelecimento prisional e continuou a exercer seu trabalho normalmente. Porém, o personagem não se recolhe a prisão durante a noite e nem nos dias de folga, o que parece descaracterizar esse tipo de pena.

O inquérito está em curso e K. desconhece a motivação do processo.

O inquérito é um procedimento investigatório prévio, constituído por uma série de diligências, cuja finalidade é a obtenção de indícios para que o titular da ação – Ministério Público ou a própria vítima - possa propô-la contra o autor da infração penal.

Basea-se segundo o princípio da verdade real, que serve de alicerce à ação penal (independente de ser pública ou privada), o juiz pode determinar de ofício a produção de provas que seja necessária para dirimir as dúvidas sobre o caso. Destaca-se também neste princípio que o processo penal 6 não admite ficções e presunções processuais, pois seu objetivo é descobrir como os fatos efetivamente ocorreram para então cominar a pena. Tendo sido a pena cominada a K. antes até de qualquer julgamento 7 , vê-se como o princípio da verdade real ficou esquecido.

Neste momento, não há que se falar ainda em contraditório, pois este só ocorre após o início efetivo da ação penal, quando já formalizada uma acusação contra o autor da infração.

Um dos homens diz à K. que se os guardas o tratam com tanta cordialidade é porque ele pode alimentar esperanças quanto ao processo. Aconselham K. usar uma camisa de baixa qualidade e queriam se encarregar de sua roupa branca caso o assunto terminasse de modo favorável. O inspetor deveria vê-lo com uma roupa preta.

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Segundo o artigo 144, § 42, da Constituição Federal, e o artigo 42 do Código de Processo Penal, o inquérito é realizado pela Polícia Judiciária (Polícia Civil). “Guardas” é a nomenclatura popular para Polícia. É importante destacar que este é o modo como o autor os designa, pois na verdade os homens não identificaram-se. Poderiam ser Oficiais de Justiça, se levado em consideração que estavam executando uma ordem emanada pelo magistrado. Neste caso, poderia ser uma intimação pois, como será visto, K. deverá comparecer a uma audiência com o juiz; poderia ser uma ordem de prisão ou uma citação.

Tal passagem causa confusão porque ambos conceitos se confudem pelo estranhamento da ordem que os fatos ocorrem. Assim, por ter se falado em inquérito, presume-se não existir uma ação ainda em curso e o servidor da justiça seria a autoridade policial. Porém, ao se falar em detenção, entender-se-ia que K. já fora julgado e condenado e que o Oficial de Justiça estaria proferindo a ordem de prisão emanada pelo juiz.

Nesta passagem, percebe-se também que os “guardas” podem influenciar no decorrer do processo. Não há imparcialidade e impessoalidade nos atos, já que os policiais o induzem a usar suas piores roupas (e que estas fossem pretas) ao falar com o inspetor para despertar algum tipo de impressão neste que lhe fosse favorável. 8 Além disso, os “guardas” lhe pedem sua camisa branca, visando tirar proveito pessoal. Infelizmente essa não é uma realidade absurda. Sabe-se que, ao fazer uma apreensão, muitos policiais apreendem objetos que dizem ter relação com o fato delituoso para ficar com eles. Tal prática constitui desvio de finalidade do interesse público por parte da Administração.

Os guardas não tinham ordem de prisão.

A ordem de prisão deve ser escrita para ter validade, salvo nos casos de flagrante delito; como expresso no artigo 282 do Código de Processo Penal, que encontra respaldo no artigo 5°, inciso LXI da CRFB 9 .

III Interrogatório

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K. recebeu um telefonema que o comunicava que seu interrogatório realizar-se-ia no domingo, apesar de não saber o horário exato. Ao chegar no prédio, K. depara-se com um lugar sujo e desorganizado. A sala, onde se realiza o que denomina-se no livro de assembleia, parecia dividir-se em dois partidos opositores. Porém, todos os integrantes da assembleia ostentavam no pescoço a mesma insígnia. Lá, K. faz um fervoroso discurso questionando a máquina judiciária, denunciando sua monstruosidade, sua desorganização e a corrupção e soberba dos seus funcionários.

O interrogatório é feito durante o inquérito e deve ser realizado nos mesmos moldes do interrogatório judicial. É por este ato que o juiz ouve o acusado acerca da imputação que lhe é feita. O interrogatório é meio de prova e defesa a que o réu tem direito.

No interrogatório feito ao acusado ficam presentes todos os envolvidos do processo: vítima, testemunhas, informantes, advogado do réu, defensor, promotor e juiz. É importante destacar que K. não conhece a vítima que o acusa 10 , não é apresentado às testemunhas e informantes e nem tem advogado de defesa.

A ambientação descrita no livro se assemelha ao tribunal do júri por estarem presentes pessoas além dos envolvidos no processo. Neste caso, artigo 5°, inciso XXXVIII da Constituição Federal atribui a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, tentados ou consumados. Esta competência é considerada como "mínima", pois a Constituição Federal de 1988 assegurou a competência para julgamento de tais delitos, não havendo proibição da ampliação do rol dos crimes que serão apreciados pelo Tribunal do Júri por via de norma infraconstitucional.

O tribunal do júri tem direito a fazer perguntas ao acusado e se pronunciar sobre o caso. Assim, pode-se entender que na verdade não havia dois partidos obrigatoriamente opostos, eram apenas dois grandes grupos do júri deliberando sobre a questão. A insígnia que os presentes usavam no pescoço pode ser simplesmente interpretada como uma identificação comum dos participantes do processo de K.

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IV A espera de novidades processuais

K. espera uma nova audiência ou comunicação da justiça. A espera dura semanas e K. não sabe como agir. Sua vizinha da pensão ( Srta. Bürstner) quer auxiliá-lo no processo, apresentando sua amiga que conhecia o juiz de instrução (Lanz), o qual poderia ajudar na oratória do caso fazendo-lhe uma entrevista.

Por não saber como agir, K. deveria procurar um advogado ou a Defensoria Pública para receber instruções sobre o que fazer em seu processo. Caberia também ao Ministério Público, dentro de sua função de fiscal da lei, agir em sua defesa, caso houvesse alguma irregularidade em sua aplicação.

Ao invés disso, K. procura conhecidos para ajuda-lo. Atualmente, o juiz de instrução pouco teria a ajudar. Segundo a doutrina contemporânea, a instrução é um sistema processual que não funciona mais. Com a progressiva complexidade dos casos nos últimos tempos, os atrasos tornaram-se frequentes, podendo demorar de 5 a 10 anos para que a instrução fosse concluída. Hervé Lehman, doutrinário advogado em Paris e ex-juiz de instrução, diz que:

“A instrução é um mecanismo no qual as pessoas suspeitas são colocadas em análise, mandadas para a prisão provisórias, expostas à execração pública, depois, alguns anos mais tarde, julgadas.” 11

A instrução era muito comum na Europa. Este...

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