Processo em meio reticular-eletrônico: constitucionalismo dialógico e democracia hiper-real, no contexto dos megadados

AutorCláudio Brandão
Páginas9-21

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“Observando as redes que se encontram por trás de complexos sistemas como a célula ou a sociedade, temos o privilégio de observar a arquitetura da complexidade”

Albert-Laszló Barabási

“(O real) Já não tem de ser racional, pois já não se compara com nenhuma instância, ideal ou negativa. É apenas operacional”.

Jean Baudrillard

Os justos só são eficazes, só conseguem manter a existência de uma comunidade,constituindo uma inteligência coletiva”.

Pierre Lévy

O meio é a mensagem

Marshall McLuhan

“O curso da vida se compõe de partes, de vivências que se encontram em conexão interna entre si (Zusammenhang). Toda vivencia singular está referida a um eu, de que é parte; mediante a estrutura se enlaça com outras partes numa conexão. Em todo o espiritual encontramos conexão; assim, a conexão é uma categoria que surge da vida”

Wilhelm Dilthey

“O rizoma, distintamente das árvores e suas raízes, conecta-se de um ponto qualquer a um outro ponto qualquer, pondo em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não signos.”

Deleuze e Guattari

O poder dos fluxos é mais importantes que os fluxos do poder

Manuel Castells

“Esse modelo reticular é semelhante ao modelo de um hipertexto: e não por acaso os modelos reticulares (não somente no direito) são fortemente influenciados pela cibernética e pela informática. Mas também com os modelos reticulares, na realidade, o jurista faz aquilo que sempre fez, mas com uma nova técnica. As normas oitocentescas são cheias de remissões explícitas a outras normas, os códigos e os manuais são cheios de notas ao pé da página que remetem a outras normas e a outros textos, também os scholia dos Basilikà ou as glosas medievais ao Corpus Juris são hipertextos sem informática. Assim como Monsieur Jourdan fazia prosa sem saber, também os juristas sempre usaram as técnicas hipertextuais ou reticulares sem chamá-las assim.”

Mario Losano

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1. Introdução

O aplicativo JTe lançado pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho põe o acesso ao Judiciário na palma da mão, conecta os autos ao mundo. No mundo da Gig Economy, do capitalismo hypster a racionalidade que informa a teoria processual sofre, evidentemente, os influxos dessa viragem tecnológica do processo. Parafraseando Boaventura Santos, há nessa transição da teoria do processo energias de emancipação, mas também de dominação. A tarefa da doutrina é, de forma analítica, qual coruja hegeliana, reconstruir de forma crítica a história do pensamento da tecnologia no processo judicial, após – e só após – o entardecer do mundo da emergência e da inovação. O direito sempre esteve a reboque da realidade.

A coruja, a metáfora do conhecimento para HEGEL, como se sabe, parte do mito da Deusa Athena – Minerva em Roma – que se fez humana, para convencer os humanos a respeitarem os deuses, mas foi vencida pela habilidade de Arachne de tecer teias. Pode-se arriscar a afirmar que as teias e as redes ressurgem da mitologia greco-romana como habilidade essencialmente humana, como potência virtual para superar a transcendência. A imanência da rede, em releitura de ESPINOSA, como potência (potentia) contra a atualização do poder (potestas); contrapoder diria NEGRI.

A potência virtual de emancipação da sociedade em rede tem um outro lado da moeda: o enredamento. Os fluxos da rede são emanações de sua potência e de seu poder. NEGRI nos revela a disputa política entre a potência constituinte e o poder constituído; tanto poderes públicos, como poderes econômicos, que cooptam, cristalizam e paralisam a potência da multidão conectada.

A inteligência artificial, de aprendizado, passa a ser tecida, instrumentalizada, para captura e armazenamento de dados sociais na rede. Não há mais especificidade de dados sensíveis; na era do Big Data, todos os dados são sensíveis, biopolíticos. Até a opção reiterada por um sabor de pizza comprada via plataforma eletrônica passa a ser informação estratégica. Informação é poder; megadados capturados em rede, são escrutinados e transformados em megapoderes.

O processo tradicional pressupunha o entrecruzamento da democracia e o direito, sintetizados no conceito de Estado Democrático de Direito. O processo virtual pressupõe a compreensão prévia da imbricação entre democracia digital e os direitos da cidadania em rede. Pode ser atualização da potência do constitucionalismo dialógico e cooperativo, mas em consideração à limitação dos poderes de enredamento. Direito é limite, limite do poder, nesse sentido contrapoder.

A democracia tradicional contenta-se pragmaticamente com a democracia representativa. A democracia digital vai além e já cogita da democracia direta, participativa e em tempo real, em outras palavras, pressupõe a intervenção ativa, interativa e virtual do cidadão na política institucionalizada, até mesmo na elaboração e votação das leis.

Desse caldo da sociedade virtual é que eclode o processo eletrônico, não propriamente de sua automação, muito embora como decorrência dos meios dela oriundos. Os otimistas miram a automatização dos atos processuais e a sustentabilidade ambiental. Os pessimistas fazem cogitações sobre a perda da dimensão humana do processo.

Nem apocalíptico, nem integrado. Não se trata de desinventar o computador, de um obscurantismo tecnológico apocalíptico, tampouco de mergulhar na ingenuidade do triunfalismo deslumbrado e integrado. Est modus in rebus, sunt certi denique fines.

A automatização é um aspecto muito relevante, mas que nem de longe pode se apresentar como solução para a complexidade de demandas e conflitos que envolvem a sociedade contemporânea. Automatizar mecanicamente procedimentos e decisões, além disso, é uma via rápida para alcançar a completa falta de legitimação social do Judiciário brasileiro. O que não significa que não se possa vislumbrar um futuro promissor no desenvolvimento de ontologias jurídicas ou até mesmo na formulação de algoritmos argumentativos, como ferramentas para atenuar a subjetividade arbitrária das decisões.

Por outro lado, não há qualquer incompatibilidade entre a informática e a nossa dimensão humana. O conhecimento em geral e, especificamente, a ciência da computação é uma inerência tão humana quanto a dignidade das pessoas. Não há entre tais instâncias qualquer antinomia, senão uma forte relação de interatividade. ORTEGA Y GASSET observou, em sua meditação sobre a técnica, que o “homem sem técnica, isto é, sem reação contra o meio, não é um homem.”

A despeito da imanência humana da tecnologia, o que nos parece decisivo no processo eletrônico – inclusive para efeitos da construção de uma nova teoria geral para o processo – não é propriamente seu viés tecnológico, mas, sim, sua característica reticular, ou seja, o fato de ser um processo em rede, acessível pela rede mundial de computadores e, como tal, beneficiário da “inteligência coletiva” (LÉVY), mas também sujeito aos afetos das redes sociais.

A conexão mais do que um influxo processual tende a se consolidar como direito material humano, como se vê, por exemplo da Resolução A/HRC/C/L.20

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do Conselho de Direitos Humanos da ONU, do qual o Brasil faz parte, firmada em julho de 2016, que justamente enfatiza a conectividade, ou seja, o imperativo da plena conversão do mundo dos direitos desconectados num ordenamento jurídico em rede – “the same rights that people have offline must also be protected online”.

O processo eletrônico é muito mais um “rizoma1 do que uma mera estrutura ou um sistema. Inter e extraoperabilidade são faces operacionais da plataforma processual. O processo virtual é um workflow rizomático que nos convida a pensar no fluxo incessante entre ato e potência de um processo pós-estruturalista, aberto e em contato (rectius: em “conexão”) com o ponto de vista externo do direito e do processo. É a possibilidade de conexão dos autos com o mundo, tanto com o mundo dos fatos, como dos direitos efetivos, possibilidade essa que, a seu turno, altera e afeta profundamente a racionalidade, as características e a principiologia da teoria geral do processo, como se pretende desmonstrar no desenvolvimento desta obra.

O processo eletrônico é multimídia – rectius: ‘unimídia multimodal’ (LÈVY, 1999)2 – e pode ser muito diferente daquele em que predomina uma única lingua-gem (escrita) e uma única mídia (impressa no papel). O meio em que se desenvolve o processo não é neutro. Ele afeta e, muitas vezes, condiciona o conteúdo da mensagem. O meio não é um simples canal de comunicação, suas características afetam o conteúdo de maneira muito mais profunda do que supunha nossa racionalidade pré-McLuhan, o grande pensador da teoria da comunicação dos anos 60, que desvendou muitos mistérios da comunicação humana, ao considerar que os meios (de comunicação, de transporte etc) são extensões do ser humano e, como tais, afetam nosso entendimento ou a nossa cognoscibilidade3.

Conexão, meio e Big Data são novos mecanismos que vieram para habitar a nova teoria geral do processo.

2. As gerações do processo eletrônico

Em termos didáticos parece útil divisar os sistemas de processo eletrônico em gerações, tomando uma pequena analogia da linguagem em voga na tecnologia da comunicação: primeira geração (1G), a geração do “foto-processo”; a segunda geração (2G) do “e-processo”, a terceira geração (3G) do “ia-processo”, a 4G do “i-processo” e, no atual desenvolvimento tecnológico, podemos já pensar na quinta fase (5G) do “big data--processo”.

A 1G diz respeito aos primeiros sistemas que surgiram, a partir da construção hermenêutica dos juízes federais, que partiram apenas de sua criatividade e ativismo judicial, interpretando...

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