O processo eletrônico da perspectiva do juiz

AutorS. Tavares Pereira
CargoMestre em Ciência Jurídica (Univali/SC)
Páginas85-99

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1. Introdução

O processo eletrônico é aquele produzido com uma ferramenta especial tecnológica, muito so?sticada, chamada pelo legislador de Sistema Eletrônico1 de Processamento de Ações Judiciais (art. 8º da Lei n. 11.419/2006). Por comodidade, ao longo do artigo, as referências aos vários sistemas (eProc, Projudi, PJe, PJe-JT, Provi) será feita pela sigla SEPAJ (gênero).

Um Sepaj é um sistema técnico que ocupa lugar central no novo processo. Não é à toa que a Resolução n. 136/14, do CNJ, contém 73 vezes a palavra sistema, com sentido de software, e estabelece, já em seu art. 1º, que “a tramitação do processo judicial no âmbito da Justiça do Trabalho, a prática de atos processuais e sua representação por meio eletrônico [...] serão realizadas exclusivamente por intermédio do [...] PJe-JT regulamentado por esta Resolução”. E não para por aí. O art. 2º estabelece que o PJe-JT ?ca incumbido do controle do sistema judicial em relação à tramitação do processo, à padronização de todos os dados e informações, à produção, registro e publicidade dos atos processuais e ao fornecimento de dados essenciais à gestão. En?m, sem o sistema não há processo. Então, o sistema não exerce um role no processo. Ele é elemento essencial do processo que, aliás, poderá existir sem parte (revelia) e sem advogado. Mas não sem o sistema.

Embora haja inúmeros Sepajs2 sendo utilizados atualmente, um esforço de uniformização está em curso para levar todos os ramos do Poder Judiciário à utilização de um sistema único, o PJe.

Diante do novo processo e de sua ferramenta fundamental tecnológica, o juiz pode postar-se como estrategista — com foco especial para a ferramenta inovadora que a tecnologia lhe oferece — como operador/ usuário e como teórico do Direito. Até agora, em regra, os juízes têm “sofrido o processo eletrônico”. Como meros operadores/usuários, eles têm se desdobrado para fazer o processo da forma e pelos meios que outros pensaram, estratégica, tecnológica e juridicamente. A tese deste trabalho é que isso está errado.

O novo modo de fazer o processo o transforma profundamente. No novo cenário justecnológico, uma postura pró-ativa dos

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juízes, desde cada uma das perspectivas acima (teórica, estratégica e de usuário/operador), parece indispensável, embora isso represente um desa?o e tanto, começando pela base de conhecimento.

2. Processo “eletrônico”

Há séculos os juristas adjetivam o processo. Mas nunca deixaram o âmbito das ciências humanas: canônico, penal, civil, trabalhista, legal, devido. Os conceitos de tais quali?cativos se constroem no âmbito de ciências com as quais os juristas sempre tiveram a?nidade.

O adjetivo eletrônico é diferente. Trata de uma qualidade que transforma desde a base o procedimento judicial e introduz, no processo, um instrumento tecnológico poderoso, o enigmático software, além de uma gama de outras tecnologias que os pretensiosos cientistas alienígenas chamam de novas tecnologias da informação e da comunicação (NTICs)3.

Um pouco aturdidos, os cientistas do Direito estão decobrindo que, doravante, a teorização do Direito exigirá saberes de variadas áreas. As novas tecnologias estão quebrando as pernas das teorias jurídicas puras. O Direito tornou-se incapaz de dar conta, sozinho, de sua própria autorre?exão.

Novos conceitos, especializados e multi-disciplinares, são necessários para tratar do processo eletrônico: agente automatizado, automação, interoperação, regra de negócio, iteração recursiva, linkedição, web Service, software, criptogra?a etc. Novas categorias cientí?cas estão emergindo (a ideia de eNorma — norma tecnológica — é uma delas!). Portanto, seja com viés compreensivista, seja sob ótica instrumental-reconstrutivista, doravante o aporte tecnológico terá de ser considerado e contemplado dentro de qualquer esquema teórico do Direito e do processo.

3. Mudança apenas de meio

Para alguns, nesse amálgama das novas tecnologias com o jurídico, vive-se apenas uma mudança de meio. Não parece o caso.

A tecnologia transforma profundamente as coisas. Ela mudou as geladeiras, os carros, a medicina, as viagens e vai mudar o processo. Além disso, a palavrinha tecnologia traz consigo a vastidão de conhecimento das ditas ciências da complexidade4. Delas, destacam-se, para o Direito, as ligadas às teorias dos sistemas, da informação, da comunicação e dos métodos computacionais, todas elas interligadas por profundos laços intelectuais. Um cenário assustador para o jurista, porque desconhecido, desde os saberes até a lógica de base. Entre Carnelutti, Chiovenda, Kelsen e Dinamarco, aparecerão nomes como Wiener e Bateson, Hadamard e Deutsch.

O deôntico retornará ao embate com o vetusto e já quase descartado, nas últimas décadas, silogismo clássico da lógica menor. A contingência que o modal-deôntico ajudou a introduzir na conclusão silogística para replicar o humano e dar logicidade ao jurídico — ser e não ser simultâneo, a libertação das causalidades imperativas — destrói a inescapabilidade da construção formalística. A impossibilidade técnica de reprodução do humano a?orará.

A lógica quântica vai provar que os juristas e o Direito é que têm razão. Ser e não ser simultâneos, eis a questão. A própria natureza é assim, como demonstra o postulado da “superposição”5 no nível quântico. Mas,

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por enquanto e com a computação clássica, o embate será interessante. Introduzir o computador é suprimir a humanidade, a criatividade, a ?exibilidade, o “talvez seja, talvez não seja.”

4. O juiz estrategista
4.1. O Direito deve continuar sendo dos juristas A subinstrumentalidade da tecnologia

Diante do novo cenário justecnológico, parece necessária, antes de tudo, uma atitude de disposição para aproveitar os saberes exógenos. Usa-se muito pouco, ainda.

Em nenhuma hipótese, entretanto, devem os juristas abdicar de seu papel sistematizador desse amálgama do Direito com a tecnologia. Tratando-se do processo, de que se ocupa precipuamente este artigo, os juízes devem ?car atentos.

O papel subinstrumental (ou duplo instrumental) da tecnologia tem de ser bem estabelecido. O império do Direito deve prevalecer sobre o império da tecnologia.

Nas muitas reuniões de técnicos e juristas para alcançar as especi?cações necessárias ao desenvolvimento dos Sepajs, uma pergunta estranha acabou sendo vulgarizada. Ela veio do meio empresarial, pelas mãos dos técnicos analistas de sistemas, e hoje já se veem os juristas lidarem com ela com relativa facilidade: qual a regra de negócio?

Essa pergunta ocupa enorme espaço nas reuniões porque os técnicos conhecem a tecnologia — ou deveriam conhecer — mas não o negócio dos juízes — interpretar e aplicar a lei. Note-se que, em muitos e variados momentos do preparo do sistema técnico que estabelece e domina o espaço do processo, alguém que não é o juiz condutor do processo tem de fazer de?nições prévias. Isso signi?ca explicitar as regras de negócio para que possam ser transformadas em programas de computador, em algoritmos.

Ainda que tais de?nições sejam feitas no âmbito de comitês, a não a?nidade dos juristas com a tecnologia facilita escolhas e decisões que podem privilegiar o tecnológico (facilitar o trabalho dos técnicos e a incorporação tecnológica) e violar o legal, o que não tem sido incomum.

Isso tem posto a especi?cação das regras de negócio, necessárias para municiar o técnico, numa zona de penumbra que preocupa ou, ao menos, deveria preocupar os juízes. A transparência tecnológica parece um reclamo legítimo, conforme reivindicações feitas pelas associações de magistrados no ?nal de 2013 ao CNJ.

Exempli?cando: no caso da contestação trabalhista, por conveniências de ordem tecnológica, determinou-se a antecipação da entrega, contrariando uma prática de anos, fundada em expressa disposição legal (CLT, art. 847). Diante da exigência de entrega antecipada, os advogados passaram a entregá-la sob “sigilo”, um caminho sistêmico aberto para atender aos requerimentos de medidas sem ouvida do adverso.

Para os técnicos, a atitude dos advogados representou apenas uma diminuição de trabalho, pois não tiveram de desenvolver caminhos que re?zessem, no sistema, as vias consagradas de atuação na Justiça do Trabalho (abertura da defesa em audiência).

Para os juristas, ao contrário, imensas perplexidades foram suscitadas: pode uma resolução alterar a lei? Para cristalizar no sistema, pode-se optar pela resolução regulamentar e abandonar a lei? Pode um advogado quebrar a publicidade do processo e surrupiar à outra parte o acesso à peça entregue? Qual a situação dessa peça que “está e não está” no processo ao mesmo tempo?

Além disso, a alteração, ainda que promovida pelo legislador, deveria ser sistemática para ajustar, por exemplo, a consagrada prática da desistência da ação pelo simples não compare-cimento à audiência inicial. Os técnicos desconhecem — e nem têm a obrigação de conhecer — as consequências colaterais dessas inovações feitas para o atendimento do tecnológico. Os

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cientistas do Direito, ao contrário, são os responsáveis pela congruência das alterações do Direito (integridade sistêmica).

Como coordenadores e sistematizadores do amálgama Direito + Tecnologias, os juízes devem ter presente que “a tecnologia é instrumento a serviço do instrumento — o processo — e, portanto, sua incorporação deve ser feita...

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