O processo de construção do novo marco legal migratório no brasil: entre a ideologia da segurança nacional e o direito humano a migrar

AutorRoberta Camineiro Baggio - Laura Madrid Sartoretto
CargoDoutora em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008)
Páginas27-59
Rev. direitos fundam. democ., v. 24, n. 3, p. 27-59, set./dez. 2019.
DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v24i31299
ISSN 1982-0496
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO NOVO MARCO LEGAL MIGRATÓRIO NO
BRASIL: ENTRE A IDEOLOGIA DA SEGURANÇA NACIONAL E O DIREITO
HUMANO DE MIGRAR
BUILDING THE NEW LEGAL FRAMEWORK FOR MIGRATION IN BRAZIL:
BETWEEN THE NATIONAL SECURITY IDEOLOGY AND THE HUMAN RIGHT TO
MIGRATE
__________________________________________________________________________________
Laura Madrid Sartaretto
Doutora em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Mestre em Direito Internacional
Público pela University College London UCL. Possui graduação em Ciências Jurídicas
e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2009).
Roberta Camineiro Baggio
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008), mestre em
Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2001) e graduada em Direito pela
Universidade Federal de Uberlândia (1999) Atua nas áreas de Direitos Humanos e
Constitucionalismo na América Latina.
Resumo
No Brasil, desde os anos 80, se mantiveram vestígios de legislações
autoritárias, como é o caso do Estatuto de Estrangeiro, que tinha
fundamento no paradigma da segurança nacional e da proteção do
mercado de trabalho interno e que, mesmo tendo se tornado
anacrônico com a aprovação da Constituição de 1988, produziu efeitos
no ordenamento jurídico por 37 anos. Em 2017, finalmente, o referido
Estatuto foi revogado pela aprovação da nova Lei de Migração. Apesar
da história que precedeu a aprovação do novo marco regulatório,
marcada pela construção democrática de propostas feitas pela 1ª
COMIGRAR (Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio) e
consolidadas por uma comissão de especialistas, constituída em 2013,
as alterações sofridas ao longo do processo de tramitação na Câmara
de Deputados, deixaram o texto final muito similar a um projeto de lei
mais antigo, afastando-se consideravelmente da proposta de
promoção e proteção dos direitos humanos dos migrantes produzida
pela referida comissão. Ademais, as negociações que envolveram o
processo de votação; os vetos realizados pelo poder executivo
(aprovados pelo Congresso Nacional) e, ainda, o decreto
regulamentador expedido pela presidência da república; fizeram com
que a nova Lei ficasse muito aquém das expectativas da sociedade
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Revista de Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 24, n. 3, p. 27-59, set./dez., de 2019.
civil envolvida com o tema. Esse artigo se propõe a fazer uma
reconstrução histórica do processo de consolidação do novo marco
legal problematizando os motivos pelos quais o texto aprovado pelo
Congresso Nacional não obteve sucesso em suprimir as marcas
ideológicas da segurança nacional alçando o Brasil a uma concepção
de migração como um direito humano fundamental.
Palavras-chave: Lei de Migração. Direito Humano a Migrar.
Segurança Nacional. Processo Legislativo.
Abstract
In Brazil, since the 1980s, there have been traces of authoritarianism
in the legislation, such as in the Foreigners Statute, which was based
on the paradigm of national security and the protection of the internal
labor market. Although it became anachronistic with the promulgation
of the 1988 Constitution, it continued to be effective in the legal system
for 37 years. Finally, in 2017, that law was revoked by the passing of
the new Law of Migration. Despite the history that preceded the
approval of the new regulatory framework, marked by the democratic
construction of proposals made by the 1st National Conference on
Migrations and Refuge (COMIGRAR) and consolidated by a Committee
of Experts, established in 2013, the changes imposed during the
legislative process in the House of Representatives left the final
instrument very similar to the older bill, moving away from the proposal
of promoting and protecting human rights of migrants produced by the
Committee. In addition, the negotiations that involved the voting
process; the vetoes imposed by the Executive Branch (approved by the
National Congress), as well as the regulatory decree issued by the
Presidency of the Republic; made the new Law far away from the
expectations of the civil society involved in the process. This article
proposes to develop a historical review of the consolidation process of
the new legal framework, addressing the reasons why the instrument
approved by the National Congress did not succeeded in suppressing
the of national security ideological features, failing in elevating Brazil to
a conception of migration as a fundamental human right.
Keywords: Migration Law. Human Right to Migrate. National Security.
Legislative process.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Em 2017 foi aprovada no Brasil a Lei 13.445 que passou a regulamentar as
questões de migração em substituição ao Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815 de 1980. A
priori, essa mudança legislativa deveria representar um avanço para a ordem
constitucional tanto pelo processo de mobilização social que impulsionou um debate
amplo sobre os desafios a serem contemplados pela nova legislação como em termos
de superação de uma herança legal autoritária, uma vez que a Lei 6.815 - elaborada
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ainda no final do regime militar - foi fortemente pautada pela lógica da segurança
nacional.
Contudo, o modo como se consolidou o processo legislativo e, sobretudo, a
fundamentação dos vetos presidenciais também presente no decreto de regulamentação
da nova lei, reafirmaram a lógica da segurança nacional, deslindando as dificuldades de
superação de nossa cultura autoritária e dificultando a consolidação da tão reivindicada
condição da migração como um direito humano fundamental.
Reconhecendo os avanços que ocorreram com a chegada do novo marco legal,
mas problematizando seus limites de construção histórica e suas dificuldades em se
colocar como uma legislação de superação da dinâmica estatal anteriormente
predominante, o artigo apresentará, primeiramente, as marcas da ideologia da
segurança nacional consolidadas pelo Estatuto Estrangeiro e suas condições de
permanência na ordem constitucional de 1988, mesmo diante de sua flagrante
incompatibilidade; para depois fazer a reconstrução histórica do processo de
mobilização social que, com apoio institucional, contribuiu para a alteração do marco
legal. Por fim, será feita uma análise dos vetos presidenciais, aceitos pelo Congresso
Nacional, demonstrando a persistência em se tratar o tema migratório desde a lógica da
segurança nacional.
2. O ESTATUTO DO ESTRANGEIRO E A IDEOLOGIA DA SEGURANÇA
NACIONAL
Muito se falou, na última década, sobre a necessidade de revogação do
Estatuto do Estrangeiro, Lei n. 6.815/80, que regulava o tratamento de imigrantes no
Brasil. Instrumento jurídico elaborado e adotado no ocaso do regime autoritário, que se
iniciou em meados da década de 60, o Estatuto do Estrangeiro submetia a entrada e
permanência do estrangeiro no Brasil ao interesse nacional e, explicitamente
estabelecia, em seu art. 2º, que a lei deveria atender precipuamente à segurança
nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, socioeconômicos e
culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional, deixando sem qualquer
consideração a possibilidade de tratamento do tema desde o reconhecimento de
direitos dos imigrantes.
Ainda que o Estatuto do Estrangeiro não tenha inaugurado a prática estatal de
perseguição aos migrantes, já que esse tipo de atuação repressora pode ser constatada

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