Aspectos Polêmicos do Processo Coletivo na Esfera Trabalhista

AutorLuiz Philippe Vieira de Mello Filho; Renata Queiroz Dutra
Páginas496-516

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Introdução

O fenômeno da coletivização da tutela jurisdicional representou uma mudança nos paradigmas clássicos do processo, subvertendo a lógica individualista outrora reinante no processo civil.

A absorção das diretrizes norteadoras da nova sistemática processual coletiva, materizalizada no microssistema composto pela Constituição Federal, pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), pela Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85) e pela Lei de Ação Popular (Lei n. 4.717/65), implicou a revisão de conceitos elementares como o de partes, o de substituição processual e o de coisa julgada, além de ter demandado formulações teóricas que adaptassem à tutela coletiva as regras de distribuição de competência, o pagamento de honorários advocatícios, dentre outros.

A adaptação dos juristas em geral e especialmente dos magistrados a essa nova concepção molecular da tutela jurisdicional tem se dado por meio de caminhos tortuosos, nos quais se progride na medida do amadurecimento dos debates jurídicos e da superação dos antigos paradigmas. Na Justiça do Trabalho, esse processo não tem sido diferente.

Num esforço de identificar as recentes tensões pelas quais passou a jurisprudência trabalhista em relação ao processo coletivo, esse estudo pretende analisar aspectos relevantes da tutela coletiva nessa esfera especializada do Poder Judiciário.

Alguns deles já foram objeto de uniformização por parte do Tribunal Superior do Trabalho, outros ainda encontram-se em debate, razão porque afiguram-se elucidativos quanto aos contornos polêmicos da jurisdição coletiva trabalhista.

1. Resgate histórico

A coletivização do processo civil não pode ser compreendida sem que se considere a evolução dos modelos de Estado Contemporâneo. O reconhecimento de direitos que transcendem a esfera individual e mesmo patrimonial do sujeito, culminando na necessidade do surgimento de tutelas processuais adequadas à defesa dos novos direitos transindividuais reconhecidos, não decorre senão das mudanças paradigmáticas quanto ao Estado de Direito.

Mauricio Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado explicam que o Estado Constitucional Contemporâneo vislumbrou a três paradigmas diversos: o paradigma do Estado Liberal, forjado a partir do individualismo, da sobrevalorização da segurança jurídica e do não intervencionismo estatal nos setores econômico e social; o paradigma do Estado Social, marcado pela necessidade de um ente estatal administrador, intervencionista e assistencialista, que respondesse às demandas sociais cada vez mais coletivizadas em razão da urbanização e da industrialização; e o paradigma do Estado Democrático de Direito, hoje abraçado pela Constituição de 1988, e marcado, em uma perspectiva axiológica, pela consecução de direitos fundamentais da pessoa humana1.

Nas lições de Joselita Nepomuceno Borba, o Estado, na trajetória do reconhecimento dos direitos do homem e sob a influência das transformações sociais, evoluiu de sua vertente liberal, passando pela social e, atualmente, encontra-se em vias de consolidar-se como pós-social2. Na sua conformação social, ainda segundo a autora, a atenção do Estado direciona-se às questões sociais, desviando a atenção meramente individualista. Nesse período, ressalta que:

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O Estado organiza-se e apresenta-se como o grande responsável pela harmonização social e fiador de alguns direitos. Ele desponta da inércia para agir. E o despertar do Estado é imperioso porque, como diz Bobbio, os direitos sociais, diversamente dos direitos civis, na prática, são difíceis de ser implementados, o que requer intervenção ativa do Estado e, para tanto, sua própria reformulação.

Desponta o Estado social e, com ele, proliferam-se direitos do homem como fenômeno social. Isso ocorre, ainda consoante Bobbio, pelo aumento de bens merecedores de tutela, pela legitimação de mais sujeitos titulares de direitos e por se atribuir mais status ao indivíduo. O alargamento do conceito de sujeito de direito, nessa hipótese, passou a abranger, além do indivíduo, as entidades de classe, as organizações sindicais, os grupos vulneráveis e a própria humanidade.3

Ocorre que surgem outras "transformações sociais determinadas pela massificação e pela globalização da sociedade e o impacto causado nas relações sociais pelo espetacular desenvolvimento da ciência e da tecnologia em todas as vertentes do conhecimento humano"4. Nesse sentido,

Com as transformações e os desenvolvimentos, surgem também novas preocupações, novos problemas e novos desafios, delineando-se novo modelo de Estado. Nesse contexto, os atores sociais correspondem aos novos movimentos sociais, sem, contudo, eliminar os problemas individuais nem ignorar a relevância da conflitualidade de classes.

A sociedade, portanto, nos tempos atuais, experimenta conflitos de massa, nunca antes imaginados, conduzindo a complexidade social a um ambiente propício à eclosão de conflitos difusos. E somente com o surgimento de uma nova sociedade de massa, diz Cappelletti, observam-se as violações em massa.

Consequentemente, os princípios que regulam o Direito, desde o surgimento do Estado liberal - cujo enfoque era dado ao indivíduo -, não consegue mais responder aos anseios proporcionados pelo surgimento de direitos de massa, típicos da passagem do Estado social para o pós-social.

O reconhecimento de novos direitos às coletividades requer a criação de novos mecanismos de tutela coletiva. As transformações sociais interferem na organização do Estado, ocasionando reflexos na ciência do direito e na forma de prestação da atividade jurisdicional. Surgem novos paradigmas na sistemática processual que impõem a necessária compreensão dos institutos, sob uma nova perspectiva desprendida dos esteios tradicionais.

No Brasil, iniciou-se em 1965 com a Lei da Ação Popular (Lei n. 4.717), que legitimou o cidadão para a defesa dos direitos difusos ligados ao patrimônio ambiental. Em seguida editou-

-se a Lei n. 6.938/81, legitimando o Ministério Público para ações ambientais de responsabilidade penal e civil. Em 1985 foi editada a Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347).

O grande marco, porém, foi a edição da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), que tratou de regulamentar de forma direta e abrangente, os interesses e legitimados para as ações coletivas.

Com efeito, embora criado para a defesa de uma espécie claramente identificada - o consumidor e a relação de consumo -, passou o Código de Defesa do Consumidor a ser aplicável a todas as espécies de interesses coletivos.

Tem-se, portanto, um verdadeiro microssistema para a defesa dos interesses coletivos, assentado nos valores maiores do Estado Democrático de Direito consagrados pela Constituição Federal de 1988, que não se confunde com o processo civil clássico, de cunho individualista, mas também dele não é totalmente independente.

2. Representação adequada

Consoante dito, a sociedade está diante de novos direitos e sua efetivação requer uma nova sistemática. A interpretação a ser conferida, diante da legislação já existente, deve adequar-se aos novos direitos que se pretende resguardar. Nesse sentido, os arts. 90 do Código de Defesa do Consumidor e 19 da Lei da Ação Civil Pública permitem a aplicação das normas do Código de Processo Civil, naquilo em que não contrariar suas disposições.

Nos termos do art. 8º, III, da Constituição Federal, compete aos sindicatos a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria em questões judiciais.

O art. 82, IV, do CDC, confere legitimidade para a defesa coletiva de interesses difusos ou coletivos, às associações legalmente constituídas e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos difuso e coletivo, dispensada a autorização assemblear.

Os sindicatos são constituídos na forma de associação, a teor do art. 511 e seguintes da CLT, e detêm, por conseguinte, legitimidade para atuar na defesa coletiva da categoria, como substituto processual.

A primeira grande celeuma enfrentada na Justiça do Trabalho a respeito das tutelas coletivas cingiu-se aos limites da representação processual protagonizada pelos Sindicatos.

Numa perspectiva ainda adstrita à normatização infra-constitucional, bem como aos dispositivos legais aplicáveis ao direito processual individual, dispunha a Súmula n. 310 desta Corte, editada por meio da Res. n. 1/1993, DJ 6, 10 e 12.5.1993:

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SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. SINDICATO (cancelamento mantido) - Res. n. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003 e republicada DJ 25.11.2003

I - O art. 8º, inciso III, da Constituição da República não assegura a substituição processual pelo sindicato.

II - A substituição processual autorizada ao sindicato pelas Leis ns. 6.708, de 30.10.1979, e 7.238, de 29.10.1984, limitada aos associados, restringe-se às demandas que visem aos reajustes salariais previstos em lei, ajuizadas até 3.7.1989, data em que entrou em vigor a Lei n. 7.788/1989.

III - A Lei n. 7.788/1989, em seu art. 8º, assegurou, durante sua vigência, a legitimidade do sindicato como substituto processual da categoria.

IV - A substituição processual autorizada pela Lei n. 8.073, de 30.7.1990, ao sindicato alcança todos os integrantes da categoria e é restrita às demandas que visem à satisfação de reajustes salariais específicos resultantes de disposição prevista em lei de política salarial.

V - Em qualquer ação proposta pelo sindicato como substituto processual, todos os substituídos serão individualizados na petição inicial e, para o início da execução, devidamente identificados pelo número da Carteira de Trabalho e Previdência Social ou de qualquer documento de identidade.

VI - É lícito aos substituídos integrar a lide...

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