Entre o procedimento formal e o conteúdo selvagem: imanência e democracia em Jürgen Habermas e Antonio Negri

AutorPedro Luiz Lima
Páginas377-411
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2017v16n37p377
377377 – 411
Entre o procedimento formal
e o conteúdo selvagem:
imanência e democracia em
Jürgen Habermas e Antonio Negri
Pedro Luiz Lima1
“É evidente que todas as formas políticas consideram
a democracia como verdade e que, portanto, apenas são
verdadeiras quando são democráticas”.
(Karl Marx)
Resumo
A partir de uma análise crítico-comparativa das teorias da democracia de Jürgen Habermas e An-
tonio Negri, o presente artigo busca esclarecer os fundamentos conceituais de ambas as obras,
tomando como eixo a discussão sobre o modo pelo qual suas concepções de democracia se ins-
crevem, cada uma, em seu respectivo plano de imanência. Com a premissa de que a leitura cru-
zada desses dois autores favorece uma mais aguda compreensão dos componentes estruturantes,
implicações normativas e limites de suas teorias, objetiva-se situá-las como alternativas distintas
(deliberação/substância), e potencialmente complementares (entendido o consenso como forma
e conteúdo), para se pensar a questão democrática contemporânea.
Palavras-chave: Teorias da democracia. Imanência. Soberania. Jürgen Habermas. Antonio Negri.
Introdução2
A questão da democracia talvez seja aquela que, a despeito das contingên-
cias de cada contexto discursivo, mais propriamente pode ser descrita como
uma das incógnitas perenes da história da losoa política. Desde a revolta
1 Doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ e Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: pedrollima@gmail.com.
2 Agradeço aos pareceristas de Política & Sociedade cujos apontamentos contribuíram substantivamente para
a versão f‌inal do presente artigo.
Entre o Procedimento Formal e o Conteúdo Selvagem: imanência e democracia em Jürgen Habermas e Antonio Negri | Pedro Luiz Lima
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platônica contra os efeitos perversos de um regime capaz de condenar demo-
craticamente o lho mais virtuoso da polis até o atestado de óbito da histó-
ria pela suposta eternização dos moldes ocidentais-capitalistas de democracia
liberal – em boa parte dos momentos desta trajetória acidentada, a losoa
política, entendida não de maneira unívoca, mas antes como conito de lo-
soas, parece se referir, negativa ou positivamente, ao problema democrático.
E se nas sociedades ocidentais contemporâneas, em seu discurso políti-
co ocial, a democracia aparece, no mais das vezes, como conceito taken for
granted, imobilizado por mecanismos eleitorais, espetacularizado nas imagens
midiáticas e submetido à mercantilização pela lógica expansiva do mercado;
se esta é, de fato, a tendência geral, então, tornam-se necessárias investidas
conceituais que não apenas desvelem as especicidades e limites desta forma
política, mas que também concorram para a denição, mesmo que tateante,
de possíveis rotas de aperfeiçoamento.
Nesse sentido, para além das necessárias investigações acerca dos mais e-
cazes mecanismos de accountability e da busca pelo aprimoramento da prática
eleitoral que constituem parte do corpo da ciência política, faz-se mister reto-
mar a empreitada, de caráter mais abstrato, da investigação teórico-conceitual
dos pontos de ancoragem normativa e dos múltiplos sentidos das concepções
contemporâneas de democracia. É neste quadro que as teorias da democracia
de dois dos lósofos políticos mais notáveis desta virada de século, Jürgen Ha-
bermas e Antonio Negri, aparecem como profícuos pontos de partida. Ainda
que Habermas construa sua noção de democracia pelo mergulho reconstrucio-
nista nos próprios fundamentos do Estado constitucional moderno, enquanto
Negri o faz ao inscrever sócio-historicamente a ontologia de pensadores como
Espinosa – mesmo nessa disparidade, é possível, a nosso juízo, reconhecer um
propósito comum, de pensar a democracia para além da sua redução a certas
formas políticas que a enredariam e impossibilitariam sua efetividade.
Neste artigo, um dos postulados centrais a ser desenvolvido, que funda-
menta a possibilidade de uma análise crítica das obras de Negri e Habermas,
diz respeito a um imanentismo indissociável de suas concepções de democra-
cia. A despeito das inúmeras especicidades que caracterizam e diferenciam
seus projetos teóricos, é possível pensar ambas as losoas como herdeiras da
crítica do jovem Marx aos Princípios de Filosoa do Direito, de Hegel – crítica
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 16 - Nº 37 - Set./Dez. de 2017
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que incidia decisivamente sobre a ascendência do Estado sobre a sociedade
civil. Se a democracia é “forma e conteúdo” a um só tempo, ou antes, se ela
é o “enigma revelado de todas as constituições” (MARX, 2005, p. 49-50), é
precisamente porque ela não se aloja por sobre a sociedade como mera forma
de governo, mas antes deve ser procurada no nível do conteúdo, ou seja, no
próprio seio da sociedade – em um plano de imanência.
Denido este solo comum de onde partimos para analisar e contrapor
as perspectivas de Habermas e Negri, convém notar que não se pretenderá
realizar, no que segue, um exercício de mera aproximação dos dois pensa-
mentos, de suas categorias e conclusões. O objetivo aqui é, antes, explorar
tanto alguns pontos de interseção quanto outros momentos de afastamento,
a m de melhor identicar algumas vicissitudes do pensamento democrático
contemporâneo.
Em suma, trata-se de demarcar o diverso terreno conceitual a partir do
qual as teorias da democracia de Negri e Habermas podem emergir, e assim
denir algumas reviravoltas analíticas que as aproximam, onde pareceria corri-
queiro afastá-las, e as distinguem, por sentidos pouco explorados na literatura
secundária. Com a premissa, que se pretende conrmar ao longo da exposi-
ção, de que a leitura crítica em conjunto de ambas as teorias da democracia
favorece uma mais aguda compreensão de seus componentes estruturantes,
de suas implicações normativas e de seus limites – com tal premissa, espera-se
contribuir para um mapeamento mais rigoroso do panorama contemporâneo
da teoria democrática.
Na primeira parte deste artigo, tratar-se-á eminentemente de desenvolver
a tese segundo a qual as teorias dos dois autores apontariam para (e se cons-
truiriam em) um plano de imanência, fundamentando-o, contudo, de modo
diverso, a partir das categorias de razão, para Habermas, e desejo, para Negri
– categorias, estas, que se desenvolvem a partir de tradições losócas dis-
tintas: via Kant e Hegel, no primeiro caso, e via Espinosa, no segundo. Esta
primeira denição dos fundamentos parece-nos, com efeito, um passo crucial
na busca por uma interpretação mais densa da relação entre suas concepções
de democracia e por uma análise crítica da “compreensão do presente” que
se efetiva através delas. Na segunda parte do texto, aquelas concepções serão
diretamente investigadas, tendo como eixo central a relação que entretêm com

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