Os títulos de crédito eletrônicos e as suas problemáticas nos planos teórico e prático

AutorLuís Felipe Spinelli
Páginas186-212

Page 186

1. Introdução

É cediço que o Direito Comercial, por sua própria origem e natureza, está intimamente atrelado às mudanças da estrutura econômico-social, normalmente sendo a porta de entrada para posteriores modificações em outros ramos da Ciência Jurídica;1 está ele, por sua própria lógica interna, sempre atento às necessidades da economia, apresentando soluções e abrindo-se ao recebimento das mais diversas influências. Neste sentido, por óbvio que a disciplina dos títulos de crédito, tida como uma das maiores contribuições do Direito Comercial à economia moderna,2 acaba por

Page 187

sofrer a influência dos novos tempos, como a dos recursos disponibilizados pela evolução tecnológica.

Um dos pilares da ordem econômica é o crédito, sendo imperiosa a sua circulação, considerando-se os títulos de crédito como instrumentos essenciais para tal estrutura.3 E, tendo em vista a primazia da finalidade de circulação da riqueza que os títulos de crédito sempre permitiram, em conjunto com a agilidade que seria viabilizada com a informática, tem-se que, intuitivamente, a possibilidade de emissão e circulação dos títulos de crédito eletrônicos vai ao encontro dos interesses empresariais; tal conjunção permitiria, sem dúvida, ganhos em eficiência. Destarte, diante do cenário que se apresenta, necessário seria, como afirma a doutrina, repensar a disciplina dos títulos de crédito, a fim de adaptá-la aos novos recursos hoje existentes.4 E é nesta perspectiva que se centra a primeira parte deste ensaio: trataremos, então, inicialmente, dos argumentos atualmente utilizados e que fundamentariam a informatização dos títulos de crédito, além de pontuarmos as "por-tas de entrada" de tal fenômeno no ordenamento jurídico nacional.

Entretanto, cumpre salientar que nem tudo é tão simples. Os avanços tecnológicos muitas vezes aparentam maior atrativi-dade para o mundo do Direito do que realmente o são; assim, no afã de recepcionar eventuais alterações e estruturas, acaba-se por aceitar qualquer argumento que minimamente possa ter algum sinal de procedência, mesmo que não guarde lógica com nosso sistema e não suporte análises mais profundas. Nestes termos, muito se exalta a evolução promovida pela informática, gastando-se rios de tinta sobre o funcionamento de soluções tecnológicas (como ocorre no caso da assinatura digital, por exemplo), mas pouco se reflete sobre sua adaptabilidade à disciplina, no caso em comento, dos títulos de crédito. Desta forma, na segunda parte do presente estudo, nos deteremos na verificação dos principais pontos teóricos que consideramos controvertidos no que tange aos títulos de crédito eletrônicos, realizando-se, por fim, um estudo crítico do que se convencionou chamar "duplicata virtual" - a qual, desde já se frisa, de duplicata não se trata.

Esboçado o quadro que será desenvolvido nesta oportunidade, ressaltamos, antes de iniciarmos a análise a qual nos propomos, que o cerne do presente trabalho passa longe de prender-se em aspectos técnico-informáticos. Como já deve ter sido vislumbrado, nosso escopo é o de jogar dúvidas sobre o tema dos títulos de crédito virtuais, lançando dificuldades que, para nós, parecem intransponíveis, apesar de serem mencionadas no debate jurídico somente de modo superficial; objetivamos, então, verificar a real compatibilidade da clássica disciplina legal e doutrinária dos títulos de crédito com os instrumentos fornecidos pela informática.

2. Títulos de crédito eletrônicos: estudo dos argumentos favoráveis

Frente ao importante papel cumprido, na economia, pelos títulos de crédito, e a

Page 188

avalanche de mudanças que a informática acarreta nos mais diversos ramos, não seria nada mais lógico que acreditar na digitali-zação de referido sistema circulatório e na própria desmaterialização do título, visto que a agilidade - cada vez mais importante em nossa sociedade - gerada iria ao encontro da referida disciplina, disponibilizando a transmissão do crédito de maneira mais eficiente. Os títulos de crédito eletrônicos constituiriam, assim, uma adaptação da disciplina clássica aos novos tempos - sendo mais uma comprovação da historicidade e adaptabilidade do Direito Comercial -, pois permitiriam a circulação do crédito de maneira rápida e segura, sem a necessidade de transmissão física da cártula.5

Nesse sentido, cumpre analisar quais argumentos computam a favor dos títulos de crédito eletrônicos, o que faremos nesta primeira etapa, além de verificar como o ordenamento jurídico pátrio supostamente recepciona tal novidade.

2. 1 A informatização dos títulos de crédito

Quando se fala em títulos de crédito eletrônicos, é lugar comum mencionar sua descartularização ou desmaterialização, tendo em vista a noção de cártula ser essencial para a teoria dos títulos de crédito (juntamente com a autonomia e a literali-dade), a qual ocorreria em dois momentos:6 primeiramente, teríamos a desmaterialização da circulação (quando a cártula ainda existe, mas não mais circula); posteriormente, faríamos referência à desmaterialização do próprio título de crédito (ou seja, a cártula deixa de existir), passando a ser substituído por registros em contas de depósito em nome de seus titulares.

Toda a problemática, então, dos títulos de crédito eletrônicos refere-se, basicamente, à cartularidade (não residindo, portanto, nas características da literalidade e da autonomia - e nem se falando, aqui, na abstração, existente apenas em alguns títulos), ou seja, na necessidade de o título de crédito apresentar um suporte material. O foco central encontra-se na desnecessidade de o próprio título circular fisicamente e no questionamento de ele realmente existir em documento corporificado - duas etapas da descartularização que, neste ensaio, trataremos conjuntamente.7

Nesse sentido, iniciamos nossa análise com o conceito de títulos de crédito de

Page 189

Cesare Vivante (o qual foi adotado, no art. 887, pelo novo Código Civil,8 apesar de pequeno defeito redacional), para quem título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado.9 E, como já dissemos que nem a literalidade e muito menos a autonomia importam para a discussão que ora se analisa, restringe-se nosso estudo à cartularidade, a qual resta consubstanciada, na referida definição, no termo documento, que é elemento basilar do clássico instituto.10 Assim, passa-se a discutir o conceito de documento, que sempre foi encarado como algo material, corpóreo, palpável.

Então, para tentar viabilizar a ideia de título de crédito eletrônico, a doutrina,11 por exemplo, tende a adotar o conceito de documento dado por Francesco Carnelutti (ou a definição de outros juristas renoma-dos que desenvolveram a teoria do docu-mento), o qual afirma ser documento alguma coisa que faz conhecer um fato.12 Nesse sentido, o próprio conceito de Cesare Vivante, quando interpretado o termo documento de acordo com o aqui referido, abarcaria as hipóteses dos títulos de crédito eletrônicos, inexistindo qualquer outra necessidade de adaptação; basta aceitar que a noção de documento também abrange os documentos em meio digital (não se esquecendo que a Medida Provisória n. 2.200/ 2002 considera documento público ou particular para todos os fins legais os documentos eletrônicos dos quais ela trata,13 além de o próprio Código Civil, no art. 225, os reconhecer14), pois estes também são capazes de reproduzir acontecimentos da nossa realidade.

Em tal direção assevera Ligia Paula Pires Pinto: "Pela denominada 'Teoria do Documento', o 'documento' representa qualquer base de conhecimento fixada materialmente e disposta de maneira que se possa utilizá-la para extrair cognição do que está escrito. Assim, é toda representação material destinada a reproduzir determinada manifestação do pensamento. Neste sentido, Giovanni Pelizzi ainda completa com a seguinte expressão: 7/ documento, come si è detto, specchio del diritto (...)', ao explicar que muitas vezes o documento é o espelho do direito criado pelo negócio subjacente".15

Page 190

Na mesma esteira vão as observações de Ana Paulo Pessoa, ao obtemperar que "Apoiando-se na definição de documento de Carnelutti, é fácil inferir que a teoria dos documentos não apresenta qualquer restrição a sua desmaterialização. Mesmo considerando que a ideia de documento tende a identificar-se com um texto redigido por escrito, não mais subsiste a necessidade de base física papel. Quando Vivante adotou a remissão a documento, abriu a possibilidade para que o direito pudesse ser contido em qualquer suporte material - desde que represente uma coisa que possa fazer conhecer um fato. Aí está a grandeza da definição de Vivante, capaz de manter a vanguarda, inobstante a mudança dos paradigmas perpetrada nas últimas décadas, desde sua concepção".16

Assim, a princípio, a cartularidade dos títulos de crédito em nada seria afeta-da, apenas modificando-se o meio em que é expressa, pois passa o documento a ser eletrônico; o suporte cartáceo cederia lugar, então, para o suporte virtual.17 Portanto, partindo de tal premissa, todos os elementos clássicos da disciplina dos títulos de crédito (cartularidade, literalidade e autonomia) restariam contemplados pelos títulos de crédito eletrônicos: "(...) é limpi-damente visível que os três elementos fundamentais do conceito de Vivante estão plenamente contemplados pela disciplina dos títulos de crédito eletrônicos, especialmente ao...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT