A problemática cultural no mundo contemporâneo

AutorRenato Ortiz
CargoPesquisador do CNPq; Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas
Páginas17-66
http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2017v16n35p17
1717 – 66
A Problemática Cultural
no Mundo Contemporâneo
Renato Ortiz1
Resumo
Diante da relevância contemporânea obtida pela cultura e seus derivados, mediante a combi-
nação de história dos conceitos com etnograf‌ia das ideais, traça-se um amplo panorama das
alterações semânticas da noção de cultura. Contudo, o propósito não é fazer um inventário
exaustivo desse amplo quadro semântico. Ao tomar por suporte lógico duas categorias distintas,
“constelação de sentido” e “camadas geológicas”, analisadas em três fases que objetivam o
entendimento da ideia de cultura: “culto, cultivado, arte”, “cultura como totalidade” (nação e
estudos antropológicos) e “cultura de massa”. Porém, sem abrir mão da ruptura existente entre
as três constelações, relativas à novidade que engendram na problemática da cultura, não são
consideradas como se estivessem isoladas uma das outras. Opta-se por observar como elas estão
mutuamente atravessadas; sobretudo, tornam-se referências recíprocas entre si.
Palavras-chave: Cultura. Constelação de sentido. Camadas geológicas. Mundo contemporâneo.
Introdução
Quando nos deparamos com um livro, outrora célebre, traduzido em
vários idiomas, História Sociológica da Cultura, de Alfred Weber (1970), per-
cebemos o quanto a temática cultural se transformou. Publicado em 1935 –
embora os argumentos principais tenham sido elaborados antes da guerra de
1914-1918 –, ele traça um quadro da história universal da humanidade: Egito,
Babilônia, Grécia, Roma, Bizâncio, Idade Média, Barroco, Iluminismo, Mun-
do Ocidental. Todo esse esforço hercúleo, claramente eurocêntrico, termina
com uma pergunta de caráter losóco: em que ponto nos encontraríamos
na corrente histórica dos acontecimentos. O autor quer diagnosticar os males
do seu tempo, e descobre na predominância da técnica sobre o Espírito a ra-
zão das adversidades do presente. Dicilmente o leitor de hoje se contentaria
1 Pesquisador do CNPq; Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP).
A Problemática Cultural no Mundo Contemporâneo | Renato Ortiz
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com as explicações avançadas por Weber; entretanto, é justamente este exercí-
cio de alteridade que é esclarecedor. Ele revela um distanciamento que emerge
o ato da leitura em um ambiente distinto da época na qual o texto foi elabora-
do. Minha intenção é precisamente explorar os fundamentos que naturalizam
nossa leitura atual, ou seja, compreender as mudanças que afetam a esfera da
cultura no mundo contemporâneo.
Para isso, sou obrigado a tomar no passado alguns pontos de referência,
visto que toda mudança se faz em relação a algo que lhe é anterior. Não é
meu intuito encontrar uma denição do conceito de cultura, pois esta é uma
estratégia exaustiva e inútil, e foi tentada por dois antropólogos, Kroeber e
Kluckhon (1952), quando encontraram 164 signicados do termo em ques-
tão (passados tantos anos, o número teria obviamente aumentado). Parece-me
mais produtivo tomar outro caminho. Mas, para isso, devo claricar duas
imagens que utilizarei para encaminhar minha reexão: a de “constelação de
sentido” e de “camadas geológicas”.Por “constelação de sentido”, entendo um
conjunto formado por signicados que giram em torno de uma mesma órbita
e que delimitam um território especíco. Não importa que esses signicados
sejam distintos (seria importante se tomássemos o caminho das denições) e
algumas vezes conitivos entre si. O relevante é que eles podem ser agrupados
no interior do mesmo conjunto. Consigo assim distinguir três constelações:
“culto, cultivado, arte”, “cultura como totalidade” (nação e estudos antropo-
lógicos), “cultura de massa”.
Pode-se considerar que, até meados do século XX, cada uma dessas cons-
telações possuía certa autonomia, os signicados, nos seus aspectos centrais,
concentravam-se dentro de fronteiras relativamente seguras: os estudos antro-
pológicos estavam distantes da esfera da arte; a noção de cultura de massa era
a negação da grande arte e inaplicável às sociedades indígenas; a modernidade
nacional era distinta da realidade etnológica considerada pela Antropologia
clássica. No entanto, a partir de determinado momento essas fronteiras se
rompem, a interação entre espaços relativamente estanques se intensica e
novos signicados e redenições agregam-se ao quadro anterior. Esses signi-
cados, agora, sem girar na órbita das constelações, depositam-se em camadas
geológicas. E, enquanto fragmentos, elementos dispersos, são reinterpretados
e integrados ao debate contemporâneo. Já a ideia de “camadas geológicas” nos
permite escapar da noção de anacronismo como se o tempo tivesse sepultado
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 16 - Nº 35 - Jan./Abr. de 2017
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as conotações anteriores. Retiro um exemplo do debate sobre a pós-moderni-
dade. A crítica às vanguardas, ao esgotamento do modernismo, à revalorização
da tradição em contraposição à ideologia do progresso, à desconança em
relação ao universalismo, ao lugar do sujeito na criação do projeto artístico,
ao interesse estético pelas tecnologias, particularmente multimídia. Tudo isso
é uma temática recorrente na perspectiva pós-moderna; entretanto, a noção
de criação, da arte como disposição singular da subjetividade, de sua relativa
autonomia, persiste. Por exemplo, a proposta de Charlie Jenks (1981) de uma
arquitetura pós-moderna implica uma ruptura em relação ao passado, mas ela
se arma também como um novo projeto artístico. Quero esclarecerdizer com
isso que essa noçãoproposta não pode prescindir da ideia de projeto artístico.
Isso signica que, mesmo sem ocupar a mesma posição anterior, fragmentos
da esfera da arte, deslocados do cânone tradicional, fazem agora parte das
camadas geológicas às quais eu me referi.
As constelações de sentido
Culto, cultivado, arte
Uma das maneiras de se apreender a particularidade das sociedades euro-
peias após a revolução industrial e as transformações de ordem política é con-
siderar o número de palavras inventadas ou ressignicadas na época: indústria,
industrial, fábrica, classe média, socialismo, estrada de ferro, cientíco, prole-
tariado, utilitário, estatística, greve. A lista poderia ser alongada, sem esquecer
moderno, cuja conotação está associada à querela dos antigos e dos modernos,
distancia-se dos séculos anteriores. O mesmo ocorre com “arte” e “cultura”,
que adquirem signicados inteiramente novos, tornam-se representações co-
letivas que denotam a emergência de uma sociedade em plena transformação.
Arte referia-se a certo tipo de habilidade técnica, da medicina à carpintaria,
tratava-se de um arte-sanato (articraft). Ao longo do século XVII o víncu-
lo com a dimensão técnica começa a se romper, como observa Collingwood
(1958), o sentido estético manifesta-se nas expressões das “belas artes” (ne
arts; beaux-arts; belle arti, shone kunst). Entretanto, é somente no XIX que
o singular, escrito com maiúscula, substitui o plural “artes” e o qualicativo
“belo” desaparece. Arte refere-se agora ao universo do “sublime” que não mais
se confunde com a noção de beleza. Algo semelhante ocorre com cultura, e

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