Problemas de compatibilidade entre direitos fundamentais

AutorPaolo Comanducci
CargoCatedrático de Filosofia do Direito, Universidade de Gênova, Itália
Páginas18-30

    Artigo originalmente publicado em espanhol sob o título Problemas de compatibilidad entre derechos fundamentales. O artigo foi originariamente apresentado nas “Primeiras Jornadas Internacionais de Direitos Fundamentais e Direito Penal”, realizadas na Associação de Magistrados e Funcionários do Judiciário da Província de Córdoba (INECIP), Córdoba, Argentina, entre os días 10 e 12 de abril de 2002.

    Tradução Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

Palavras-Chave: Direitos Fundamentais; Problemas de Compatibilidade; Filosofia do Direito

Keywords: Fundamental Rights; problems of compatibility; Philosophy of Law.

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1. Introdução

O tema dos direitos fundamentais e de sua compatibilidade pode ser focado em diferentes níveis de análise. Seguindo uma sugestão de Luigi Ferrajoli1, eu diria que há pelo menos quatro níveis nos quais é possível examinar este tema. Um nível histórico-sociológico, onde são analisadas, por um lado, as distintas gerações dos direitos fundamentais e seu desenvolvimento histórico, e, por outro, quais são os direitos de fato vigentes nas sociedades atuais e qual é a eficácia de suas garantias. Um segundo nível, dogmático, que talvez seja mais conhecido entre os operadores práticos do direito, que estudo, em um ordenamento jurídico específico, as regras que conferem direitos fundamentais, como são interpretados e que tipos de conflitos podem ocorrer entre estes direitos fundamentais. Um terceiro nível, filosóficopolítico, que se trata, sobretudo, de justificar, de um ponto de vista moral ou político, os direitos fundamentais; nível em que se discute, por exemplo, se há uma adequação da realidade jurídica com um modelo filosófico proposto, ou em que se discutem criticamente as instituições jurídicas existentes. E, por fim, um nível teórico, em que se discute o conceito de direitos fundamentais, sua tipologia e estrutura, e se contróem modelos explicativos da realidade jurídica. O nível teórico tem uma primazia lógica sobre os demais, já que, antes de analisar de qualquer forma o tema, se deve individualizar o objeto de análise (que são os direitos fundamentais?), e esta é, indubitavelmente, uma tarefa teórica.

Então, à pergunta de que se há compatibilidade ou incompatibilidade entre os direitos fundamentais, é possível dar respostas distintas, não necessariamentePage 19 incompatíveis entre si, de acordo com o nível de análise que se eleja, segundo a definição que se maneje de “direitos fundamentais”, e também segundo o que se entende por (in)compatibilidade2.

Eu limitarei o meu discurso, por razões de tempo, somente ao nível teórico, com rápidas referências aos demais níveis.

Entre as diferentes posturas teóricas que se pode enfrentar no debate contemporâneo, só me ocuparei de duas. Esta escolha pode ser explicada pela singela razão de que uma delas tem, como um de seus representantes mais destacados, Luigi Ferrajoli, cujas teses quero discutir aqui, e que a outra tem sido desenvolvida, interligando-se com o realismo jurídico escandinavo e norteamericano, justamente em minha Universidade, pela escola de Tarello à qual pertenço. Assim, talvez, eu não seja completamente imparcial na apresentação crítica das duas posturas.

2. Nível teórico
2.1. Teorias do direito

Caracterizarei primeiro, esquematicamente, as duas alternativas teóricas, já que, em minha opinião, a resposta à pergunta sobre a (in)compatibilidade entre direitos fundamentais depende em boa medida da opção por uma ou outra teoria.

A primeira alternativa consiste na teoria reconstrutiva, crítica, ou normativa em sentido metodológico: a tarefa do teórico do direito consiste em estabelecer um aparato conceitual3 sobre a base de pautas metodológicas explícitas, e, então, em construir modelos com pretensões explicativas da realidade (modelos que, sem embargo, podem também ter usos normativos, para criticar a realidade e servir de ideais reguladores). Este tipo de teorias pode, inclusive, ser definido, para usar expressão de Bobbio, como “meta-jurisprudências4” prescritivas, no duplo sentido de que: a) “prescrevem” à dogmática jurídica descrever o direito, e lhe proíbem – quando de sua participação na construção do direito – de fazê-lo ocultamente, sobrePage 20 a base de opções valorativas escondidas; b) “corrigem” a linguagem do legislador e da dogmática, fazendo terapia lingüística e conceitual, num nível metalingüístico5.

Os critérios para avaliar – também comparativamente – este primeiro tipo de teorias, onde incluo a de Ferrajoli, são fundamentalmente dois: o da coerência interna e o da potência explicativa (alcance e capacidade de perceber os elementos relevantes da realidade).

A segunda alternativa teórica consiste numa teoria descritiva, que se situa num nível maior de abstração em relação à primeira alternativa. A tarefa do teórico do direito consiste em perceber a realidade jurídica concebida como fenômeno preponderantemente lingüístico: dos discursos do legislador, dos juízes, dos operadores práticos do direito, da mesma dogmática. Também – de acordo com Bobbio –, poder-se-ia definir este tipo de teorias como meta-jurisprudências descritivas, que explicam e analisam as operações predominantemente práticas, normativas, dos distintos atores do jogo jurídico.

Ambas as posturas teóricas – normativa e descritiva – têm necessariamente um aparato conceitual, que lhes serve como ferramenta para desenvolver suas atividades de investigação (por exemplo: um conceito de direitos fundamentais): mas a primeira – a teoria normativa – o estipula explicitamente, enquanto a segunda preponderantemente o aproveita da prática dos juristas e dos órgãos, tomando como ponto de partida um inventário dos usos lingüísticos. Pense-se, por exemplo, na diferença entre a definição, explicitamente estipulativa, que Ferrajoli oferece de “direitos fundamentais”, e uma definição léxica – típica do segundo enfoque –, que faz um inventário dos sentidos em que atualmente se fala de direitos fundamentais num sistema jurídico determinado.

No debate que opõe os partidários dos dois tipos de teorias, os primeiros – digamos Ferrajoli – afirmam que os segundos não fazem teoria, e sim sociologia do direito; enquanto os segundos – digamos os Genoveses – acusam os primeiros de não fazer teoria, mas filosofia política normativa: isto é, que as teorias do primeiro tipo seriam normativas não apenas em sentido metodológico, como também ideológico.

Distanciando-se desse debate, talvez se pudessem captar as diferenças entre os dois enfoques como uma questão de grau e não qualitativa. Usando uma analogia,Page 21 poder-se-ia dizer que os partidários das teorias normativas se parecem com os gramáticos, e os partidários das teorias descritivas se parecem com os compiladores de dicionários. Gramáticas e dicionários são metalinguagens, que falam de um mesmo objeto de linguagem, uma língua natural – o espanhol, o italiano, o francês. As gramáticas são diretamente normativas (prescrevem regras de usos corretos da linguagem), enquanto os dicionários são diretamente descritivos (trazem informações sobre os usos correntes da linguagem). Contudo, as gramáticas, indiretamente, refletem também os usos lingüísticos corretos, e são, portanto, também descritivas; e os dicionários elegem apenas alguns dos sentidos em que se usam as palavras da uma língua, e são, portanto, também normativos.

Paralelamente, poder-se-ia dizer que as teorias do primeiro tipo, as normativas, são também, indiretamente, descritivas, já que os conceitos e os modelos que constroem pretendem abarcar os elementos relevantes da realidade jurídica; e que as teorias do segundo tipo, as teorias descritivas, são também, indiretamente, normativas, já que necessariamente selecionam apenas alguns usos lingüísticos e escolhem, com o critério da relevância, apenas alguns elementos da realidade jurídica.

2.2. (In)compatibilidade entre direitos fundamentais

Qualquer que seja o enfoque adotado, num nível teórico, havendo uma definição de “direito subjetivo” e de “direitos fundamentais” (definição trazida pelas respectivas teorias), coloca-se o problema da (in)compatibilidade entre direitos fundamentais, ou melhor, entre normas, princípios, que conferem direitos fundamentais.

Cabe observar, de passagem, que aqui só coloco explicitamente o problema dos conflitos entre direitos fundamentais, e não o dos conflitos entre, por um lado, normas que conferem direitos fundamentais, e, por outro, normas que prescrevem obrigações ou proibições (não me ocupo, por exemplo: do conflito entre a liberdade de expressão e a proibição de expressar determinadas idéias, ainda sim, hipoteticamente, estes conflitos poderiam também ser reconstruídos – eventualmente – como antinomias entre direitos: a liberdade de expressão e o direito-poder de limitá-la, por parte de um órgão do Estado).

Assim, parece-me que um risco comum a várias teorias normativas – e entre elas a de Ferrajoli – é a afirmação que não se dão, em abstrato, conflitos entre direitos fundamentais (ou que se estes conflitos ocorrem, não são tão “graves”), e/ou que, se ocorrem na fase da aplicação dos direitos fundamentais em situações concretas, podem ser resolvidos racionalmente (ou seja: que a solução de conflitos cumpre critérios de racionalidade que permitem, ademais, prever, ex ante, qual direito vai prevalecer, ou ao menos qual deveria prevalecer num conflito entre direitos fundamentais).

Do contrário, as teorias descritivas geralmente afirmam que de fato pode haver incompatibilidade entre os direitos fundamentais e que não é geralmente possível prever, ex ante, qual direito vai prevalecer em uma situação concreta de conflito, por falta de um critério único ou correto de resolução dos conflitos.

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