O Problema dos Assédios Moral e Sexual no Contrato Especial de Trabalho Desportivo

AutorAndréa Presas
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho na Bahia. Ex-juíza do Trabalho em Pernambuco
Páginas199-212

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Ver nota 1

1. Introdução

O problema dos assédios moral e sexual no ambiente de trabalho não é novidade. Consoante pondera Marie--Frande Hirigoyen2, o assédio no trabalho é uma coisa tão antiga quanto o próprio trabalho. Nada obstante, somente na segunda metade do século passado é que as atenções se direcionaram à observação do problema dos assédios no ambiente de trabalho.

Nessa senda, apenas na década de oitenta é que se iniciaram os estudos sobre assédio moral nos países nórdicos, repercutindo no restante da Europa na década seguinte3. Com efeito, a despeito do fenômeno do assédio moral ser muito bem conhecido em todas as culturas desde sempre, a sua descrição sistemática somente teve início a partir de uma pesquisa iniciada por Heinz Leymann, em 1982, que teve o seu resultado divulgado, em Estocolmo, no ano de 1984, no Conselho Nacional Sueco de Saúde e Segurança Ocupacional (National Swedish Board of Occupational Safety and Health)4.

Por sua vez, a noção de assédio sexual apenas ficou clara depois da década de sessenta, com as revoluções de costumes e sexual, a partir de quando se começou a discutir mais abertamente a questão sexual no meio de trabalho. Já a expressão "assédio sexual" veio a ser cunhada nos anos setenta por pesquisadores da Universidade de Cornell, durante estudos sobre as relações de gênero nos locais de trabalho, em especial a conduta do superior hierárquico com conotação sexual, em franca manifestação do exercício de poder5.

Embora já tenham sido publicados diversos estudos abordando a temática dos assédios moral e sexual no ambiente de trabalho, o problema permanece atual, haja vista que as estatísticas apontam um alto índice de casos de assédio no bojo das relações empregatícias.

Nessa esteira, em uma reportagem à Folha de São Paulo6, no ano de 2005, uma das maiores especialistas do Brasil em assédio moral, a psicóloga Margarida Barreto, apresentou os alarmantes resultados da pesquisa realizada durante seu mestrado e doutorado em psicologia do trabalho. O universo da pesquisa envolveu 42 mil trabalhadores de empresas públicas e privadas, governos e ONGs. Desse número, 10 mil pessoas (23,8%) declararam já terem sofrido algum tipo de violência psicológica e humilhação no trabalho. Entre as vítimas, os dados revelam que 63% são mulheres e 37% são homens. Cerca de 70% dos homens assediados pensaram em cometer suicídio, 90% das mulheres sofreram de pensamentos fixos e perda de memória, 70% dos homens e 50% das mulheres tiveram depressão.

Em um estudo posterior, a psicóloga brasileira constatou que, no Brasil, 39,5% dos empregados sofrem com abuso verbal e humilhações, sendo que o transtorno mental relacionado ao mundo do trabalho passou de 616 casos, em 2007, para 13.478 em 20097.

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No plano do assédio sexual, embora não existam estatísticas gerais8 da sua incidência no Brasil, são alarmantes os dados apresentados pela Organização Internacional do Trabalho no "Relatório Global no quadro do seguimento da Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho", publicado em 2011, pelo Bureau Internacional do Trabalho, em Genebra:

Os inquéritos realizados revelam taxas significativas de assédio sexual no local de trabalho, com entre 40% e 50% de mulheres na União Europeia a relatar alguma forma de assédio sexual ou de comportamento sexual indesejado no local de trabalho. Pequenos inquéritos realizados na região da Ásia-Pacifico indicam que entre 30% a 40% das trabalhadoras referem alguma forma de assédio sexual verbal ou físico. Em New South Wales, na Austrália, a maioria das queixas apresentadas em 2009 relacionadas com o trabalho dizia respeito a assédio sexual"9.

Outras pesquisas levadas a cabo nos Estados Unidos e na Europa seguem no mesmo rumo. De acordo com a Comissão Americana para Iguais Oportunidades de Emprego10, entre 1997 e 2010 foram ajuizados mais de 13.000 processos por ano, em média, contendo acusações de assédio sexual no trabalho11. Na Europa, uma pesquisa conduzida pelo Observatório Europeu de Condições de Trabalho (European Working Conditions Observatory - EWCO) mostrou que, entre 1996 e 2000, em razão do acréscimo do índice em relação às mulheres, aumentou o percentual total de empregados que admitiram ter sido vítimas de assédio sexual no ambiente de trabalho12.

Os números citados confirmam a percepção de todos os que militam nas Cortes Trabalhistas quanto ao aumento de lides envolvendo alegações de assédio nas relações de emprego, majoritariamente de assédio moral.

Não é por outra razão que, no Brasil, o Ministério do Trabalho e Emprego criou, no ano de 2009, uma cartilha intitulada Assédio Moral e Sexual no Trabalho, com o intuito de promover "ampla divulgação dessas duas modalidades a empregados e empregadores, com o objetivo de contribuir para eliminar tais práticas abusivas no ambiente de trabalho", e, assim, cumprir o "compromisso assumido pelo governo brasileiro de atender efetivamente às disposições da Convenção n. 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)", a qual concerne à discriminação em matéria de emprego e profissão, e cuja finalidade é a de que os Membros subscritores promovam a igualdade de oportunidades e de tratamento nessa questão, com o objetivo de eliminar toda forma de discriminação a esse respeito (art. 2º da Convenção), "abrangendo, nessas situações, os casos de assédios, seja moral ou sexual, no ambiente de trabalho"13.

Pois bem; tal como ocorre indiscriminadamente em qualquer relação de emprego, também no contrato especial de trabalho desportivo o assédio está igualmente presente, vitimando os seus sujeitos, que não escapam desse mal.

A afirmação acima pode até causar uma certa estranheza, na medida em que associa relações desportivas de trabalho aos fenômenos dos assédios moral e sexual.

E a sensação de surpresa ou estranheza tem explicação.

Afinal, quando se fala em práticas esportivas, a primeira ideia que aflora à mente está geralmente relacionada aos astros brasileiros do futebol, que mantêm contratos milionários com seus clubes, e cujas imagens pessoais alimentam

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a indústria do entretenimento (show business), pelo que o único assédio concebível de se cogitar seria aquele advindo dos fãs e torcedores.

A segunda sensação que vem a reboque, logo na sequência, é a de que esses atletas, de modo algum, estariam vinculados a contratos empregatícios.

Sobre essa falsa impressão são oportunas as observações de Alice Monteiro de Barros, com fincas nas lições de Héctor-Hugo Barbagelata:

A sociedade demorou bastante a admitir que "a atividade desenvolvida pelos profissionais do esporte é trabalho e os que a desempenham são trabalhadores". Héctor-Hugo Barbagelata aponta vários fatores responsáveis por essa situação entre eles o complexo processo do amadorismo e do profissionalismo, assim como a circunstância de que o trabalho em questão se insere em uma atividade lúdica, o que gera o "paradoxo desporto-trabalho" (...) Outro fator reside na circunstância de que "a atividade dos desportistas os apresenta como representantes da instituição a que estão vinculados, em uma contenda em que há vencidos e vencedores e no marco de um espetáculo em que o público tem um grau de participação muito alto"; essa classe de trabalhadores pode chegar "a desfrutar de momentos de glória, com reconhecimento e admiração do país de origem e às vezes do mundo, com frequentes entrevista e muitos elogios nos meios de comunicação e, outras vezes, poderá padecer da mais cruel desaprovação, chegando até às vias de fato". Essas duas situações não ocorrem na mesma proporção em relação a outra classe de trabalhadores, sequer do meio artístico, em que o resultado da atuação está circunscrito a um círculo limitado.

O caráter laboral da relação desportiva profissional com o clube sofreu ainda com a imagem dos jogadores que auferem elevadas remunerações, os quais alcançam o status de estrela, induzindo à conclusão de que são pessoas que não necessitam de proteção específica (os destaques estão no original)14.

A realidade, contudo, se amolda de uma forma bem diversa daquela alimentada pela imaginação, como bem observa a magistrada mineira, ao pontuar que tal alegoria "oculta um contingente enorme de jogadores, com parcos salários, que transitam no campo do anonimato e da necessidade econômica"15.

Independentemente da fama ou riqueza de alguns, é ponto pacífico que os atletas profissionais, quando sujeitos de contrato especial de trabalho desportivo, assim definido na Lei n. 9.615/1998, são empregados16 e, nessa condição, podem ser tanto vítimas quanto algozes, seja da prática de assédio moral ou sexual.

No presente artigo será analisado o problema dos assédios moral e sexual nessas relações especais de trabalho desportivo.

2. Os sujeitos do contrato especial de trabalho desportivo

Saber quem são os possíveis assediador e assediado exige, antes, a identificação dos sujeitos do contrato especial de trabalho desportivo.

Independente da modalidade de esporte, o contrato especial de trabalho desportivo ostenta, de um lado, um atleta profissional, e de outro, uma entidade de prática desportiva, conforme preceituado pelo art. 2817 da Lei n. 9.615/1998 (Lei Pelé) e pelo art. 46, caput18, do seu Regulamento.

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É curial anotar que o atleta profissional de modalidade desportiva individual pode figurar como empregado, quando celebra contrato especial de trabalho desportivo com entidade de prática desportiva, ou pode se enquadrar como autônomo, quando não mantém relação empregatícia com a entidade de prática desportiva, ao passo que o atleta profissional de...

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