A privacidade e os sigilos telefónico, profissional e bancário

AutorLeandro Bittencourt Adiers
Páginas62-95

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Introdução
  1. A época contemporânea tem por tónica a perplexidade. A intensidade e frequência dos pontos de ruptura com os paradigmas que constituíam-se em norte de segurança, em seu sentido de mediana pre-visibilidade vêm sendo portadoras de evidente inquietação no ambiente social e jurídico. O âmbito tecnológico vem tornando viáveis possibilidades inéditas de armazenagem de dados e informações, facilitando seu acesso, pesquisa, cruzamento e verificação de dados e, com isso, tornando possível não apenas uma maior fiscalização sobre os indivíduos, mas também um crescente monitoramento. Supera-se perigosamente o conceito de vigilância para chegar-se ao extremo impensável e insuportável da total intromissão e controle.

  2. O mundo de relação, pautado no anonimato do mercado e numa cada vez maior interdependência, traz à tona a necessidade inexorável de regular òs intercâmbios.1 Neste contexto, a eficácia de direitos relativiza-se, fazendo-se necessária criteriosa, razoável2

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    e proporcional3 ponderação no sentido de preservar-lhes o conteúdo, sem, todavia, afastar a consciência de que os direitos destinam-se a uma operatividade, cujas fronteiras devem ser cuidadosamente fixadas. Sua flexibilização, todavia, deve dar-se, sempre, pro libertatis.

  3. Dentro de um sistema, a norma têm função estruturadora, vinculante e mantenedora (sustentadora/reprodutora). Assim, torna-se essencial entender que o sistema jurídico deriva da organização social, e esta surge como pré-requisito à necessidade humana de ordem e segurança, ambiente sem o qual inexiste paz, antecedente necessário ao desenvolvimento individual. A origem e o destinatário da organização social é o indivíduo. A natureza intrínsenca do ser humano é a liberdade, e seu fim último, a rea-lizaçao de seus legítimos potenciais e aspirações, com autonomia moral, intelectual, política e económica.

  4. As relações pautam-se nos direitos, manifestando-se em face às necessidades e contingências humanas. Também o direito é criação humana e, tal qual seu criador, a criatura é imperfeita, parcial, mutável e finita, sujeita a todo tipo de agressão e passível de tornar-se instrumento dos mais odiosos desígnios. Sendo produto, o direito não dissocia-se do produtor, o que torna impossível analisar e compreender o direito sem análise histórica, social, económica, sociológica e filosófica. O direito é reflexo do homem, o qual é, de modo sincrônico, seu produtor e objeto.

  5. Não desconhecendo que o homem é um animal político e lobo de seu semelhante, e que a lei consiste no único instrumento apto a proteger os administrados do arbítrio dos governantes e condicionar a eficácia de seus desejos, convém que as leis sejam estudadas com algum cuidado e desconfiança, uma vez que as piores ideias e os mais inconfessáveis desejos normalmente nos são apresentados na embalagem das melhores intenções. .

  6. A própria Constituição e, por vezes, as liberdades públicas, garantias individuais e coletivas, são apontadas como entraves a uma administração e fiscalização eficazes, surgindo todo o tipo de discurso no sentido de sua reforma, supressão ou flexibilização. Aquelas balizas são condicionantes do exercício da autoridade, ou seja: esta deve ser exercida em estrito respeito àquelas, sob pena de abuso de poder, desvio de finalidade, tornando-se ilegítima e abusiva, violadora da lógica estrutural do sistema, do qual a coletividade é titular. Neste contexto, conforme exprime Rui Barbosa,4 "o cidadão que se ergue, propugnando contra o poder delirante, a liberdade extorquida, não representa uma vocação de

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    seu egoísmo: exerce verdadeira magistratura".

  7. A compreensão dos direitos e garantias individuais e coletivos, não de uma forma simplória e reducionista, que os aponta como privilégio de alguns, mas sim como património coletivo,5 é a mais adequada à formação de uma cidadania livre, consciente e plural, bem como de uma classe governante efetivamente vinculada ao interesse público, não através de um exercício de poder fulcrado na pessoa e na vontade do administrador, mas sim através da implementação de competências, estruturadas estas, bem como seus meios e fins, na letra da lei.

  8. Neste diapasão, o chamado princípio da legalidade,6 constitucionalmente positivado,7 para a administração pública, tem o significado de vinculação à letra da lei, que condiciona todos seus procedimentos, os sucessivos desencadeamento de atos e seus reflexos. Conforme ensina o Professor Fábio Comparato, "o princípio da legalidade, no âmbito do direito administrativo, foi desdobrado pela doutrina germânica,. desde Otto Mayer, na dupla ideia de supremacia da lei (Vorrang des Gesetzes) e de reserva de lei (Vorbestand des Gesetzes). (...) Em toda relação administrativa, a liberdade de ação do administrador acha-se vinculada: (...) não pela vontade do administrador estatal, mas pelo disposto em lei. A discricionariedade decisória ou estipu-lativa do administrador público somente existe, quando e onde a lei assim o determina. Daí porque não se admite nunca a interpretação analógica da lei administrativa nem, afortiori, criação normativa pela Administração Pública, fora dos casos especificamente autorizados por lei".8 Para o legislador, a legalidade impõe obediência hierárquica aos limites materiais e formais estabelecidos na própria Constituição Federal, bem como a persecução dos obje-tivos traçados nas normas programáticas.

  9. O Professor Calmon de Passos, quanto à construção e legitimação do direito, ensina: o direito, enquanto produto do pensamento e decisão (julgamen-

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    to), é sempre linguagem, texto, proposição descritiva ou proposição prescritiva, extremamente vulnerável e impotente. Esse, entretanto, é o material com que trabalhamos nós, os juristas, e representa tudo quanto , se coloca no espaço de nossa percepção e se faz operável por nós. Mas percebemos, por igual, que esses textos, proposições e prescrições são o resultado de todo um processo que os precedeu e foi determinante para a definição de seu conteúdo, o qual, em si mesmo e enquanto texto, de nenhum poder de determinação se revestiu, antes foram decisivamente determinados pelo processo de sua produção que, este sim, foi preeminente e determinante. Discipliná-lo é o que se faz imperioso para se lograr o produto desejado".9

  10. Partindo-se da premissa de que, sem partes, não existe o todo e que, portanto, o indivíduo é ò elemento estruturante da sociedade, bem como que sua dignidade (da qual a liberdade é elemento indissociável) é elemento nuclear do ordenamento jurídico, fincado na Constituição Federal, sendo esta, também, elemento vincu-lante, orientador, direcionador e limitador da atividade estatal, em todas suas esferas, vamos abordar aspectos interessantes relacionados com sigilo telefónico, profissional e bancário em contato com as garantias constitucionais de privacidade e intimidade, contraditório, presunção de inocência e vedação da prova ilícita, buscando fornecer uma visão panorâmica e integrada destes assuntos, bem como de sua interpretação e tratamento nos tribunais superiores.

O sigilo telefónico
  1. Os incs. X e XII do art. 59 da CF/ 1988, dispõem, respectivamente: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (...)" e "é inviolável o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefónicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução de processo penal".

  2. O Pleno do STF, julgando ohabeas corpus10 96912-RS, em 16.12.1993, relator o Ministro Sepúlveda Pertence, definiu, por maioria, que a interceptação telefónica necessitava regulação infraconstitucional ainda inexistente. Ilícita esta prova, contaminava as demais, oriundas direta ou indire-tamente de informações através dela obti-

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    das. O mesmo STF, no habeas corpus11 julgado em 12.6.1996, relator o Ministro Maurício Corrêa, repisou que o dispositivo constitucional autorizador da violação do sigilo das comunicações telefónicas não eraselfenforcing, necessitando ser regulamentado via lei ordinária, sendo, até então, ilícitas as provas obtidas por esta via, mesmo através de autorização judicial.

  3. Nula aquela prova, foi definido que a nulidade estendia-se às demais provas que decorriam exclusivamente dela. No julgamento do habeas corpus12 74599-SP, em 3.12.1996, a 1- Turma do STF, através de voto do Ministro limar Galvão, assentou que, não tendo sido a irregular interceptação telefónica a prova exclusiva que desencadeou o procedimento penal, somente vindo a corroborar as demais provas licitamente obtidas, não cabia anular a decisão con-denatória proferida. Á validade da condenação, portanto, derivava do nível de conexão e interdependência entre as provas coligidas.

  4. Já editada a Lei 9.296/1996, o STJ, por maioria, no julgamento do habeas corpus 10243-RJ,13 em 19.12.2000, relator

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    para o acórdão o Ministro Félix Fischer, definiu que a interceptação de comunicação telefónica somente pode ser autorizada pelo juiz competente para apreciar a ação principal, sendo nula a autorização dada por juiz incompetente. Idêntica solução é a ado-tada no STF,14 que fixou também que o decreto de nulidade não atinge as demais provas derivadas do inquérito policial, que não revestem-se de caráter decisório e são autónomas.15 Por maioria, através de voto do Ministro Francisco Rezek, o STF con-cluiu também que o princípio do contraditório não prevalece na fase inquisitória.16

  5. O STJ consagrou a interpretação...

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